Folha de S. Paulo


Análise

Métodos globais podem fazer de Anitta a primeira estrela brasileira

Com quantas notas se faz um ícone pop? Poucas teclas de um piano podem fazer um hit, mas, para ultrapassar limites de grupos sociais, gerações, plataformas e países, um artista precisa de mais do que uma melodia pegajosa.

A união desses elementos, procedimento comum na indústria americana, parece incrível em solo brasileiro. Por isso Anitta chama a atenção.

No Brasil, a apropriação de aspectos musicais é incessante. As faixas se espalham em horas na rede, e versões, playlists e vídeos com coreografias pipocam na tela, reiniciando o ciclo. Produção, difusão e consumo se confundem.

A cantora elevou a lógica, própria de países do Sul, a um patamar dito do Norte. Ela se aliou a artistas, marcas, plataformas e idiomas e, aos moldes gringos, estruturou abordagem transmidiática.

O termo, cunhado pelo pesquisador Henry Jenkins, descreve produtos culturais pulverizados para engajar em níveis distintos de diversão, imersão e identificação.

O projeto Xeque Mate/CheckMate empacota a ofensiva. Em quatro meses, Anitta lançou "Will I See You", com o produtor americano Poo Bear, "Is That for Me", com o DJ sueco Alesso, e "Downtown", com o cantor colombiano J Balvin.

O golpe fatal veio em dezembro: "Vai Malandra", cujo clipe teve, em menos de um dia, mais de 25 milhões de visualizações no YouTube.

Anitta reitera os combinados. Do duo Tropkillaz, toma emprestada a colagem de categorias, como o trap e o EDM. Do cantor Maejor, pega a linguagem do rap americano. Do funkeiro MC Zaac e do DJ Yuri Martins, puxa o ritmo e o pontinho: o trecho que emula corneta na abertura retoma a melodia da letra em escala de fácil assimilação.

O funk, que outrora tinha sido trampolim da então MC Anitta, está também nas imagens. São o paredão de caixas de som e o fluxo no meio da rua, moleques de cabelo platinado na piscina, mulheres tomando sol na laje.

Acusado de assédio sexual, o diretor do clipe, Terry Richardson, suscita polêmicas entre quem vê apenas um veículo ideológico no trabalho da cantora. Anitta, contudo, não é ofuscada pelo debate.

A abrangência do projeto parece maior. Com o colombiano Maluma na faixa "Sim ou Não", de julho de 2016, e no single "Paradinha", em 2017, ela já cantava em espanhol.

"Sua Cara", de agosto, confirma a entrada no "Novo Mundo". Feita com o produtor americano Diplo e com a cantora Pabllo Vittar, a música junta a subcultura healthgoth às areias do Saara.

A elas somam-se lançamentos que fazem convergir gêneros como o próprio funk e facetas do reggaeton e do hip-hop. Nesse panamericanismo para dançar, as músicas de Anitta chegam a quase meio bilhão de execuções no Spotify. O streaming e marcas como C&A e Adidas, aliás, são parceiros publicitários.

Anitta é fenômeno pop de métodos não tão distintos dos de Rihanna ou Justin Bieber: navega em discursos e plataformas ao sabor das tendências para divertir e cativar.

A carioca tem às mãos formas inovadoras. Resta saber se esse jeitinho pode criar a primeira popstar brasileira.

FELIPE MAIA é pesquisador em música pela Escola de Estudos Avançados em Ciências Sociais (EHESS), na França


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