Folha de S. Paulo


'Velhice é o começo da despedida', diz diretor do museu Afro Brasil

Karime Xavier / Folhapress
Emanoel Araujo, em frente ao museu Afro Brasil, que dirige desde 2004
Emanoel Araujo, em frente ao museu Afro Brasil, que dirige desde 2004

Artista, curador, colecionador e museólogo. Aos 77 anos, o baiano Emanoel Araujo passou por essas atividades e traçou uma trajetória de dedicação à memória da cultura afro-brasileira.

Ele foi diretor da Pinacoteca do Estado de São Paulo (entre 1992 e 2002) e fundou o museu Afro Brasil, que dirige desde 2004.

Nesta entrevista, fala sobre envelhecer em um país que considera "diabolicamente perverso", sobretudo por causa da percepção de que a escravidão resiste, 130 anos após a abolição da escravatura.

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Folha - O sr. era amigo da artista Tomie Ohtake, que morreu aos 101 anos. Vocês conversaram sobre velhice e morte?
Emanoel Araujo - Ninguém conversa sobre esse assunto. Há um tabu ocidental com a morte e a velhice. A velhice é um momento complicado. É um começo de despedida. Na velhice, a morte é um fato inexorável. Não há saída. A gente tem que driblar. Somos dribladores da velhice.

O sr. é um colecionador de obras afro-brasileiras. Como é a sensação de ver a coleção ganhar volume conforme você envelhece? É também um acúmulo de lembranças?
Até os 40 não. O colecionismo começa com amigos. Trocas com amigos. É uma ligação mais afetiva. Minha coleção é voltada para o resgate da cultura afro-brasileira. Terminou sendo uma ação constante, sobretudo em um país que não cuida da memória. Gosto de ter coisas que me seduzem. São uma companhia. Você não está só.

O que se perde na velhice?
Sobretudo muitos amigos. Essa é a coisa mais doída. Quando você abre sua agenda e percebe o quanto as pessoas partiram. É cruel.

E o que se ganha em troca?
O que você fez, o que você construiu. Aí aparecem as coisas, os convites, as homenagens, as medalhas, os títulos. Vem de um reconhecimento do seu trabalho.

É mais fácil aprofundar amizades quando jovem ou velho?
Jovem, absolutamente. Para o velho é impossível. A gente não tem mais energia e, sobretudo, tempo. Tempo passado e tempo presente não estão mais ambos presentes no tempo futuro. É difícil porque você passa a ser visto pelo que conquistou.
Ontem estava abrindo o carro no supermercado, passou um rapaz negro, queria pegar na minha mão. Tão engraçado. Minha reação foi achar que ele estava querendo ajudar um velho (ri). No entanto, ele queria ajudar uma pessoa que respeitava. Eu disse "não preciso". Ele respondeu, "tem gente para quem a gente precisa dar a mão por reconhecimento".

Conforme a idade avança, fatos históricos, incluindo a escravidão, parecem mais próximos ou mais distantes?
A escravidão pensada hoje é mais perversa do que quando eu tinha 40 anos. O que é estranho é que a questão com a escravidão se tornou mais próxima. Mais urgente e mais terrível. Quando você imagina que todas as coisas que se passaram há mais de 130 anos, que tudo recrudesceu, e que você tem bancadas querendo a volta da escravidão... Trabalho é sinônimo de escravidão no Brasil, um país de castas.

Entre brancos e negros?
E entre instituições e sociedade. É diferente nos Estados Unidos. O trabalho aqui não é remunerado. Você pode detectar isso nas favelas. É um surto pensar em uma favela que tenha milhares de pessoas, como a Rocinha. E que o tráfico tenha chegado de maneira tão terrível. O trabalho mal remunerado de um país escravocrata produziu favelas, a desigualdade, o racismo.

Isso contraria uma expectativa? Quando você era jovem, naturalmente, esperava que o percurso era melhorar?
Ouvia essa história desde que tinha cinco anos, de que éramos o país do futuro. De certa forma, trazia comigo essa esperança. O ensino era bom.
Com o tempo isso foi se deteriorando, com ditaduras, maus políticos. E o povo foi alijado. Cidadania é algo a ser conquistado. Não existe cidadania dada. Mas cidadão como, se você ganha R$ 900 por mês? O Brasil, deste ponto de vista, é diabolicamente perverso. Ainda hoje há um jornalista da Globo dizendo "isso é coisa de negro". Se você andar por São Paulo, vai ver muita gente abandonada, todos negros, todos loucos da loucura que é a sociedade brasileira.

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Quais eram as expectativas pessoais quando jovem? Elas se concretizaram?
O que queria era conseguir esse lugar que sabia que meus outros irmãos não conseguiriam. Trabalhei noite e dia para conquistar. Houve esse ponto de vista: ser uma pessoa diferente do que estava destinado a eles. Meninas se formaram, rapazes criaram complicações. O que conquistei foi poder me expressar como cidadão em um país que não nos dá cidadania.

Qual o significado da morte dos pais na vida de um homem?
É muito doloroso. Essa história de ficar órfão, que parece uma fantasia, é uma sensação de desamparo. Mais para uma pessoa como eu, que não pertence à terra onde mora.

O sr. vive com alguém?
Com meu cachorro.

É comum a ideia de ter família ou uma companhia. Como é envelhecer sem um parceiro?
Tive um relacionamento com uma pessoa que me abriu os olhos para a questão da sexualidade. Um antropólogo. Vivi com ele por anos, e quando vim para São Paulo, ainda tive outro relacionamento, mas depois eu disse "não".

Com quantos anos?
Depois dos 50 tive um ponto de vista de ressalva aos relacionamentos. Tive uma juventude, aos 30, 40 anos, naquela coisa, boate gay, noite. Mas não procurei uma cara-metade. Não comprei a ideia. Tive certa neutralidade com a questão sexual.

Como assim?
De certa forma, amoleci meus ímpetos. Um pouco porque estava imbuído com meu trabalho. Hoje sinto que poderia ter sido diferente. Mas não foi. E, evidentemente, essas coisas fazem falta.

Sente falta de companhia?
Sinto. Mas não procuro tampouco. Gosto de ser só. Talvez esteja sublimando a questão da solidão, mas acho que todo ser humano é solitário. E sou ciumento. É doentio. Talvez eu até tenha evitado tudo isso por causa do sofrimento de ser ciumento. Uma pessoa ciumenta como eu tem mais é que ficar só (risos).

O sr. se senta no banco reservado para o idoso no metrô?
Não tenho atestado de velhice. Entre pessoas normais, isso é bom. Mas você não está falando com uma. Tenho amigo que faz 60 e assume a velhice. Tem carteira e todas as prerrogativas do velho. E tem só 60 anos (risos). Acho o fim do mundo (risos).


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