Folha de S. Paulo


Bernardo Kucinski cogitou utilizar pseudônimo para o seu novo romance

Karime Xavier/Folhapress
Bernardo Kucinsky concede entrevista em seu apartamento em São Paulo
Bernardo Kucinsky concede entrevista em seu apartamento em São Paulo

"Eu virei um ficcionista tardiamente, há seis ou sete anos, e me dei conta de que já passei dos 80. Tenho uma vida útil pela frente limitada. Quantos anos mais? Cinco, seis? Sei lá, vai saber... Essa foi a questão que me levou a esse livro: eu preciso escrever aquilo que só eu posso escrever", diz Bernardo Kucinski, à espera de uma xícara de café, sentado na sala de seu apartamento no bairro de Pinheiros, em São Paulo.

O livro em questão é "Pretérito Imperfeito", no qual o narrador conta a história de um filho adotivo que se perde pelos caminhos tortuosos da busca por paraísos artificiais.

O processo de dependência do uso de drogas –álcool, maconha, crack e substâncias sintéticas– deflagra uma série de conflitos e angústias que afeta de maneira irremediável a vida dos pais e, claro, a do próprio rapaz, em sua passagem da adolescência para a idade adulta.

Mas é tudo verdade?

"O objetivo foi fazer uma criação literária inspirada numa história de vida real", responde o escritor. "Os cenários na grande maioria são reais e os episódios aconteceram, embora apenas parte deles."

Outras situações e personagens foram criadas, e o enredo submetido a montagem literária, com a multiplicação de capítulos curtos (57, mais um "Post-Scriptum"), a intervenção de vozes múltiplas e o uso pontual de textos prontos –como um despacho de agência de notícias.

Dessa maneira, o autor distancia-se do relato propriamente biográfico (que também tem lá suas fantasias e, em certos casos, boa literatura).

"A carta, por exemplo, é pura invenção", diz Kucinski, referindo-se ao início da história, quando o narrador relata a decisão extremada de remeter ao filho único, que vive fora do país, uma correspondência encerrando relações, num gesto que é ao mesmo tempo de libertação pessoal:

"Há anos te excluíste de nossa família; há anos vens cometendo indignidades, não uma vez, nem duas; e não por descuido", escreve o pai, saturado pelas noites insones, pelos sobressaltos e pelas surpresas chocantes: "A carta é de uma alforria que tardava. A minha alforria".

Kucinski deu ao livro o título "Pretérito Imperfeito", mas o arquivo eletrônico do texto sobre o qual trabalhou ficou guardado em seu computador como "O livro de meu aprendizado".

"Foi de fato um aprendizado" afirma o escritor, "que eu achava importante compartilhar".

Além dos tormentos e das peripécias decorrentes do drama familiar, que se passam em vários países, o narrador volta-se para suas próprias tentativas de encontrar explicações e entender o que estava acontecendo –o que inclui leituras de artigos especializados e consultas a psiquiatras.

Por envolver situações reconhecíveis e delicadas, Kucinski pensou inicialmente em assinar o livro com um nome falso. "Havia uma preocupação, por se tratar de uma história de vida que ainda está aí. Eu não queria prejudicar pessoas, familiares, parentes, filhos. A minha intenção era usar um pseudônimo", conta.

Depois Kucinski acabou convencido, por amigos e por interlocutores, a assumir a autoria.

Restava a decisão espinhosa de submeter ou não o texto ao filho.

"Pessoas me aconselharam a mostrar, mas ele só soube e só viu depois que estava pronto. Submeti, e ele achou importante publicar. Concordou com a ideia que eu tinha de que o livro poderia ser muito útil para muita gente."

O escritor também fez consultas literárias. Escolheu algumas pessoas para mostrar os escritos antes de dá-los por finalizados. Quem mais o estimulou a fazer mudanças foi Julián Fuks, autor do premiado "A Resistência" –que foi seu aluno. "Eu criei dois capítulos por palpite dele", diz.

TRAJETÓRIA

Bernardo Kucinski teve movimentada trajetória como jornalista, militante de esquerda e professor universitário.

Opôs-se à ditadura militar, estudou em Londres, trabalhou para grandes veículos, como a revista "Veja", a BBC e o jornal britânico "The Guardian".

Também foi personagem importante na configuração da chamada "imprensa alternativa", na década de 1970. É um dos fundadores do semanário "Movimento" e dirigiu o "Em Tempo".

Fez carreira acadêmica na USP, deu aulas e trabalhou como assessor especial da Secretaria de Comunicação Social da Presidência da República no primeiro mandato de Luiz Inácio Lula da Silva (PT).

"Quando deixei minhas atividades profissionais, senti um vazio. Me veio então a ideia de escrever", lembra. "Na primeira etapa, comecei fazendo contos. Vi que tinha facilidade para aquilo, que era bom nos contos, quase uma coisa instintiva, que já nascia com aqueles elementos essenciais." Em 2011 as experiências com o gênero ganharam formato de livro em "K - Relato de uma Busca".

Veio então a segunda etapa, a presente. "Eu não tenho fôlego para um 'Guerra e Paz', um 'Grande Sertão' ou mesmo um 'A Maçã no Escuro', mas procurei avançar na qualidade literária, buscar um vocabulário melhor e um estilo melhor. Comecei a virar um escritor que trabalha mais o texto. Aí ficou mais complicado, já é uma outra exigência", diz.

Para deixar as coisas claras e tentar enfrentar a contaminação do ficcionista pelo jornalista, decidiu abandonar por completo a sua atividade original e mudar a assinatura, passando a firmar B. Kucinski nas suas criações literárias.

"São etapas que às vezes um escritor leva 30 anos para cumprir, e eu estou tendo que fazer isso em poucos anos", compara, enquanto se serve de mais uma xícara de café. "Eu sempre fui careta, o café é minha única droga."

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TRECHO

Confesso que já o quis morto. Pensamento que depressa afastei, assustado comigo mesmo. Necessitava tanto e tão imediatamente de alívio que não levava em conta o incomensurável sofrimento da perda do único filho. Ou talvez julgasse a perda definitiva mais suportável que a agonia infindável. Em todos esses anos, só tivemos sossego, paradoxalmente, durante os seis meses de abstinência forçada, em que cumpriu pena na cadeia pela agressão à companheira.

Pretérito Imperfeito
Bernardo Kucinski
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Muitas vezes, me perguntei: para que serve um filho desses? Se eu fosse crente, diria que veio ao mundo para nos pôr à prova. Desperdiçou todos os talentos. Deturpou todos os sentimentos. Fingiu afeição aos pais quando quis dinheiro, fingiu lealdade a amigos quando precisou de um teto. Cedo ou tarde, todos o abandonam. Seguem sua vida e o deixam para trás como a um traste. Tornou-se tão insignificante que, se deixasse subitamente de existir, apenas nós –seus pais– perceberíamos. O homem pode existir de muitas formas e pode sempre mudar a forma de existir; porém o tempo de uma existência é limitado. Metade de seu tempo se foi. Por isso, me pergunto: para que serve um filho desses?

Capítulo 54 de 'Pretérito Imperfeito', quinto livro de ficção de B. Kucinski

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PRETÉRITO IMPERFEITO
AUTOR B. Kucinski
EDITORA Companhia das Letras (2017)
QUANTO R$ 39,90 (152 págs.) e R$ 27,90 (e-book)


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