Folha de S. Paulo


Cult, 'A Margem' abre a Retrospectiva do Cinema Brasileiro em cópia nova

O ano de 1967 viu os lançamentos de "Terra em Transe", de Glauber Rocha, e "O Caso dos Irmãos Naves", de Luís Sérgio Person, filmes brasileiros que posteriormente ganharam status de obras clássicas.

Mas, naquele ano, parte da crítica caiu de amores por um outro filme, "A Margem", o primeiro longa de Ozualdo Candeias (1918-2007).

Àquela altura, o diretor nascido em Cajobi (SP) praticamente só era conhecido como homem de cinema pelos seus colegas da Boca do Lixo, polo de produção e distribuição de filmes no centro de São Paulo.

'"A Margem" é um ponto de afirmação do cinema nacional, uma vitória silenciosa", escreveu Moniz Vianna no extinto jornal carioca "Correio da Manhã". Para um dos expoentes da história da crítica de cinema no Brasil, era "indiscutivelmente o melhor filme nacional do ano".

Desde então, "A Margem" ganhou sessões especiais no Brasil e no exterior, que reforçaram sua aura "cult". Nem sempre, porém, as cópias tinham qualidade razoável para exibição. Pior: havia risco de deterioração dos negativos.

No YouTube, por exemplo, há versões do filme de Candeias com péssima definição.

A boa nova é que "A Margem" volta, enfim, a ser exibido em uma versão muito próxima à vista no lançamento, cinco décadas atrás.

Após um pedido formal do produtor e diretor Eugênio Puppo, o filme passou por um processo de restauração digital na Cinemateca, que se estendeu por mais de três anos. A reportagem viu a versão recuperada. De fato, imagem e som ganharam a nitidez que o filme merece.

Nesta quinta (7), às 21h, "A Margem", de roupa nova, abre a Retrospectiva do Cinema Brasileiro no Cinesesc, com entrada gratuita.

"Todas as fitas [brasileiras] contavam a história da classe média pra cima. Eu quis mostrar daí para baixo", diz Candeias no documentário que leva seu nome, assinado por Puppo.

Em "A Margem", Candeias acompanha quatro personagens que vivem nas bordas do rio Tietê, entre ruínas de uma igreja e de casarões, lixões, matagais. Além de mirar sem rodeios os desajustes sociais, o diretor reflete sobre amores incompletos, loucura e morte.

Não bastassem os temas incomuns para a época, ele lançava uma estética muito particular, com poucos diálogos, variação de lentes e movimentos de câmera, atores não-profissionais, entre outros recursos.

Havia ainda a ótima trilha sonora do Zimbo Trio, especialmente realçada na cópia restaurada.

Candeias tinha quase 50 anos quando fez "A Margem". Talvez a estreia tardia como diretor tenha apurado sua visão do ofício, uma busca pela "vanguardagem", como dizia. Seu filme logo se tornou um dos marcos fundadores do "cinema marginal".

Nos anos seguintes, ele dirigiu longas relevantes, como "Meu Nome É Tonho" (1971), um faroeste à brasileira, e "Aopção ou as Rosas da Estrada" (1981), premiado no Festival de Locarno. Nenhum deles, porém, causou tanto impacto entre os cinéfilos quanto o inaugural "A Margem".

CANDEIAS FOTÓGRAFO

O diretor teve quatro filhos, dois de um casamento e dois do seguinte. A caçula é a designer gráfica e fotógrafa Simone Ribeiro Candeias, 50.

Ela titubeia ao ser perguntada sobre suas produções favoritas entre as dirigidas por seu pai. Além de "A Margem", acaba citando "A Herança" (1971), uma adaptação de "Hamlet" para o sertão brasileiro.

Ao ser lançado, o filme foi alvo de controvérsias por, entre outras razões, dar o papel de Ofélia a Zuleica Maria, uma atriz negra. "Tive que me defender porque diziam que eu estava avacalhando Shakespeare", lembrou Candeias décadas depois.

Outro filme mencionado por Simone é "O Vigilante" (1992), este por razões mais afetivas. Ela acompanhou parte da produção. Apesar das incursões eventuais às filmagens de Candeias, nenhum dos quatro filhos se dedicou ao trabalho no cinema.

Simone tem forte lembrança do pai como um fotógrafo obsessivo. Ao morrer, há uma década, ele deixou um acervo com mais de 16 mil fotografias, que está sob os cuidados da produtora de Puppo, com o consentimento da família.

Puppo é responsável pela curadoria da exposição no Cinesesc com 38 fotos feitas por Candeias. Além de imagens de "A Margem", a mostra apresenta retratos feitos pelo diretor de amigos da Boca do Lixo, como os diretores José Mojica Marins, Carlos Reichenbach, Roberto Santos e Luís Sérgio Person.

Aliás, Candeias vive na memória do cinema brasileiro muito por conta do empenho de Puppo. Além da preservação dessas fotos e da realização de um documentário sobre o diretor paulista, promoveu mostras com os filmes do cineasta e lançou livros sobre ele.

"A originalidade e a crueza do cinema de Candeias me marcaram muito", diz.

DISCO VOADOR

Não fossem os discos voadores Candeias talvez tivesse levado a vida toda como caminhoneiro, atividade que exerceu após vender sorvetes e trabalhar na roça e em fábricas.

Em passagem pelo interior de São Paulo, soube dos OVNIs (objetos voadores não identificados) que rondavam a região. Logo comprou uma pequena câmera para registrá-los.

Fascinado pela "maquininha", como ele a chamava, comprou dezenas de livros sobre métodos de filmagem, a maior parte deles em espanhol. Também gastava horas batendo papo com os técnicos do ramo e assistia a muitos filmes, brasileiros e estrangeiros.

Assim, de modo um tanto tortuoso, adquiriu noções de roteiro, fotografia e produção. Já na casa dos 40 anos, começou a trabalhar em atividades diversas em filmes da Boca do Lixo. Foi assistente de direção de "À Meia-noite Levarei seu Alma" (1964), de José Mojica Marins.

"Topar com disco voador não topei, mas aprendi tudo isso em cinema", disse o diretor em depoimento publicado no catálogo de mostra dedicada a ele, em 2002.

Esses primeiros passos conduziram Candeias à realização de "A Margem". O caminhoneiro havia se tornado definitivamente um diretor de cinema. Dos bons.

A MARGEM
QUANDO hoje (quinta), às 21h
ONDE Cinesesc (rua Augusta, 2075, São Paulo)
QUANTO entrada gratuita


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