Folha de S. Paulo


crítica

'Pequenas Certezas' leva público a buscar relações fora do palco

PEQUENAS CERTEZAS (bom)
QUANDO de qui. a sáb., das 21h às 22h10, dom., das 20h às 21h10
ONDE Centro Cultural São Paulo (r. Vergueiro, 1.000, Liberdade, São Paulo)
QUANTO R$ 20

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Em "Pequenas Certezas", a dramaturga mexicana Bárbara Colio cria uma história na qual a morte e o passado insistem em permanecer na vida presente, represando o fluxo da existência.

É um texto repleto de vultos e espectros perambulando vivos. Desvencilhar-se desta permanência fúnebre é o que abre as chances do futuro para as personagens na peça.

Mas não se trata apenas de impasses individuais da vida privada. Afinal, boa parte dos acontecimentos se passa em Tijuana, que é talvez a fronteira mais emblemática entre o México e os Estados Unidos.

Uma cidade coberta de cicatrizes e mortos não enterrados, sejam os desaparecidos nas tentativas de travessia para os EUA ou as vítimas dos cartéis de narcotraficantes.

Mas o espetáculo brasileiro não faz a transposição necessária para lidar com esse contexto bem específico. O fato de tudo se passar em Tijuana deve ser um signo forte para um espectador mexicano, que logo conecta a trama da peça àquela realidade local onde as padarias estão abarrotadas de fotos de desaparecidos.

Na penúltima cena, por exemplo, o corpo velado pela família foi encontrado no mar, na costa daquela cidade onde a maior parte das travessias para os EUA é feita a nado.

Conexões possíveis como essa não são automáticas nem óbvias para um brasileiro na cidade de São Paulo. Sem um trabalho de adaptação do texto, a correlação entre a trama familiar e a realidade social se dissolve.

O resultado disso é ambivalente na montagem dirigida por Fernanda D'Umbra. Por um lado, o espetáculo perde o lastro social e fica reduzido a uma trama digestiva sobre uma família peculiar, meio cômica e meio misteriosa que ao fim aprende a seguir adiante.

Mas, ao mesmo tempo, o espetáculo "Pequenas Certezas" acontece em um espaço que faz a cena deixar de ser somente o que parece.

O porão do Centro Cultural São Paulo lembra um abrigo subterrâneo escavado na estrutura bruta da rocha. As vozes ecoam naquela "caverna" de acústica estranha lembrando-nos que estamos lá.

Em nenhum momento a encenação quer disfarçar ou se sobrepor ao local. Pelo contrário, a peça começa com um refletor apontado para a parede de rocha e as cenas acontecem pelos vãos desiguais que o espaço oferece. A luz e a interação espacial sublinham o ambiente subterrâneo.

Toda a história familiar fica então envolvida por aquele espaço de confinamento, como se tudo acontecesse dentro de um mausoléu ou algo do tipo. Seja o que for, o porão cria distanciamento da trama privada, obriga-nos a buscar relações para além do que vemos e, assim, dá vitalidade crítica à encenação.

Esta, por sua vez, tira um bom rendimento estético de um local que poderia facilmente engolir a cena.


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