Folha de S. Paulo


crítica/livro

Com estilo fluente, obra delineia a alma da Rússia a partir da arte

Divulgação
Cena de 'Alexandre Niévski' (no Brasil,'Cavaleiros de Ferro',1938), de Eisenstein
Cena de 'Alexandre Niévski' (no Brasil,'Cavaleiros de Ferro',1938), de Eisenstein

UMA HISTÓRIA CULTURAL DA RÚSSIA (muito bom)
AUTOR Orlando Figes
TRADUÇÃO Maria Beatriz de Medina
EDITORA Record
QUANTO R$ 109,90 (882 págs.)

*

Já desde o título original em inglês "Natasha's Dance: a Cultural History of Russia" (onde, inspirando a história cultural, aparece a jovem condessa de "Guerra e Paz", afeita aos salões, dançando intuitivamente, com grande mestria, uma dança camponesa), mais do que propriamente da história, o livro parece se aproximar de uma antropologia cultural (Boas, Malinówski), preocupada em compreender as culturas particulares em termos de tempo, hábitos e características.

A estrutura social –as relações entre pais e filhos, marido e mulher etc.– e as instituições –religião, economia, política– são observadas de modo participante, ativo, o que inevitavelmente favorece a interpretação.

O autor do livro, com efeito, elege certas linhas de abordagem muito sugestivas, que mantêm coesos os oito capítulos em volta dos fatos cronologicamente, historicamente e geograficamente estabelecidos.

As linhas e o estilo fluente enredam o leitor numa narrativa sempre interessante, tanto mais que no livro é dado um insólito realce à pintura, à música, às artes em geral –digno de nota é o caso do centro criativo de Abramtsevo–, além da literatura dos grandes, mesmo que, às vezes, detalhes não sejam comprovados e a interpretação do autor ora exagere, ora diminua os conflitos existentes.

A principal linha condutora dos percursos do autor acompanha os vestígios de duas dinastias da nobreza russa, a dos Volkônski e a dos Cheremétev.

Os primeiros, remotamente emparentados com Tolstói –o príncipe Serguei Volkônski foi o herói de sua infância e, em "Guerra e Paz", aparece como Bolkônski– descendem do sueco (ou danês) Riurik, chefe varegue que, por volta de 862 –segundo a mais antiga crônica russa– foi chamado pelas tribos eslavas de Velíki Nóvgorod para reinar sobre elas.

Depois dele, os seus descendentes deslocaram a capital para o Estado da Rus' de Kiev, que manteve o controle da região até 1240. É a época de Alexandre Niévski (o filme homônimo de Eisenstein é um dos poucos lustros reconhecidos pela "Lente Soviética", em capítulo especial com este nome), da invasão da horda dourada, formada pelos descendente de Gêngis Khan, que só se desfaz em 1480 e que foi também objeto de um estudo atento por parte de Figes.

As peripécias dos membros da família Volkônski atravessam os reinados dos diferentes czares, chegam até o Teatro Imperial (1899-1901), descobrem o talento do jovem Diaguilev, criam a primeira Escola Estatal de Cinema e culminam com a fuga da Rússia para Paris, em 1921, do velho príncipe.

Também de nome Serguei, ele morre em 1938 e a seu funeral assiste, já grisalha, a poeta emigrada Marina Tsvetáeva, que no ano seguinte retornaria à Rússia com o filho, para morrer em 1941.

SAGA FAMILIAR

Uma vez que –à parte alguns capítulos temáticos, como "O Casamento Camponês" e "Em Busca da Alma Russa"– a história que Figes relata avança do século 18 ao 20, a sequência dos riquíssimos condes Cheremétev, de obscuras origens tártaras, sobrevoa Ielena (1554-1581), esposa do filho de Ivan, o Terrível, e Boris (1652-1719), líder militar e diplomata, e passa a ser narrada com Piotr Boríssovitch (1751-1809), patrono do teatro russo.

Segue depois com Nikolai Petróvich que, após uma união mantida oculta durante décadas, casou-se com uma serva belíssima, Prascóvia Kovaliova, futura célebre cantora, e finalmente chega a Aleksandr Dmitrevitch (1859-1931), neto de Nikolai, compositor, regente e empresário. Isso sem contar o ramo da família fragmentada que, em 1918, foi para Paris e, depois, para Nova York.

A saga familiar dos Cheremétev alterna durante séculos campo e cidade, fixando-se em Petersburgo, na "Casa da Fonte" –símbolo lendário da cidade e refúgio da poeta Anna Akhmátova entre os anos 1926 e 1952, onde ela passa pelas provações da invasão nazista e do terror stalinista, e que o autor acompanha em suas vicissitudes até sua morte, em 1966.

Além das longas linhas familiares e entremeada a elas, há uma série de questões que são acompanhadas: a "russianidade" entre Rússia Europeia e Rússia Asiática, os ocidentalistas e os eslavófilos, os "sinais, símbolos e códigos escritos ou não, rituais, gestos e atitudes que firmam o significado público de suas obras de arte e organizam a vida íntima de uma sociedade", "o impacto das revoluções, o degelo, a estagnação etc." (o relato do livro chega até a URSS da era Brejnev).

No capítulo final, "A Rússia no Estrangeiro", são retomadas vidas e obras de outras grandes figuras que, antes da Revolução, habitavam a Rússia e se estabeleceram no estrangeiro: Nabókov, Tsvetáeva, Khodassévitch, Berbérova, Remizov, Búnin, Rachmáninov, Diaguilev, Chaliápin, Chagal, Kandínski... Ou as que por lá passaram: Górki, Biéli, Pasternak, A. Tolstói, I. Ehrenburg, Stravínski, Chostakóvitch, Prokófiev etc.

Quanto ao autor Orlando Figes (1959), professor de história na Universidade de Londres, as informações que poderão ser encontradas no Google pelo leitor interessado chamam a atenção sobre três assuntos:

1) dos seis prêmios importantes concedidos ao autor, um foi atribuído ao livro acima, sem contar os seis outros prêmios em que foi finalista;

2) em dezembro de 2008, Figes organizou uma carta aberta a Medvédev e outras autoridades russas, assinada por centenas de acadêmicos, contra o sequestro dos arquivos da Sociedade Memorial, de São Petersburgo, que continham, entre outros, materiais de seu livro "The Whisperers" (finalista do prêmio Roma em 2010, mas não publicado na Rússia devido à alegação de "imprecisões"). Em 2009, os arquivos foram devolvidos ao Memorial;

Uma História Cultural da Rússia
Orlando Figes
l
Comprar

3) inesperadamente, diante de currículo já mais consagrado do que promissor, em 2010, sob pseudônimo inicialmente negado, mas posteriormente confirmado por ele, Figes publicou resenhas favoráveis às próprias obras e pró e contra as de colegas, que o processaram. Ele, finalmente, desculpou-se e assumiu os custos do processo e dos danos aos colegas. Apesar da reparação, o estrago estava feito quanto a sua carreira, mas obviamente não quanto às qualidades da sua obra.

AURORA BERNARDINI é professora de pós-graduação em literatura russa da USP.


Endereço da página:

Links no texto: