Folha de S. Paulo


crítica/romance

Obra emaranha o passado e o presente de homem marginalizado

ENQUANTO OS DENTES (muito bom)
AUTOR Carlos Eduardo Pereira
EDITORA Todavia
QUANTO R$ 39,90 (96 págs.)

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Ler "Enquanto os Dentes", primeiro livro do carioca Carlos Eduardo Pereira, é empreender uma perturbadora viagem junto ao personagem Antônio.

Em sua velha cadeira de rodas, ele se dirige até o centro do Rio de Janeiro em um dia chuvoso e, de barca, atravessa a Baía de Guanabara, de volta à casa dos pais, 20 anos depois de deixá-la.

Trata-se de uma viagem curta e longa ao mesmo tempo, já que a pequena distância percorrida por Antônio se dilata pelos percalços enfrentados pelo cadeirante durante o percurso e, sobretudo, pelas lembranças dos principais acontecimentos de sua vida até então.

A própria estrutura do livro se compõe à feição dessa viagem: as quase cem páginas do romance, sem divisão de capítulos, parecem se expandir ao longo da leitura, graças à densidade temporal que as atravessa, num jogo bem urdido entre presente e passado.

A isso se soma o papel também ambivalente do narrador: em terceira pessoa, ele se "cola" ao campo de visão, às experiências e à memória do cadeirante, porém com um distanciamento que lhe permite contar a história de maneira mordaz e incisiva.

REVESES E TRAUMAS

Valendo-se dessas estratégias narrativas, o escritor aborda não apenas os reveses de um homem marginalizado por conta de sua condição de negro, homossexual e deficiente físico como também as situações traumáticas enfrentadas por ele no passado.

Incluem-se aí os desmandos do pai violento, a penosa temporada na escola da Marinha e o acidente que lesou sua medula. O autor consegue tudo isso sem derrapar no sentimentalismo e nos clichês do politicamente correto.

Personagem marcante, Antônio vai crescendo pouco a pouco em sua solitária e acidentada viagem, até adquirir uma consistência que o leva a perdurar para além da última página do livro.

RESILIÊNCIA

Enquanto os Dentes
Carlos Eduardo Pereira
l
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Movido por uma forte determinação, aliada a uma sensibilidade de artista, Antônio resiste a todo tipo de desafio: os buracos das ruas, as dores no corpo, a falsa generosidade dos transeuntes, a precariedade dos serviços destinados a pessoas como ele, as dívidas acumuladas, o fim de um relacionamento amoroso.

Como diz o narrador, "enquanto os dentes de sua boca deram conta, ele mordeu, sustentou a vida".

Assim, com esse seu afiado romance de estreia, Carlos Eduardo Pereira consegue mostrar, de forma vigorosa, a que veio.

MARIA ESTHER MACIEL é escritora e professora de Literatura Comparada da UFMG. Publicou, entre outros, "O Livro dos Nomes" (Companhia das Letras).


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