Folha de S. Paulo


China atrai arquitetos estrangeiros com verba farta e pranchetas ousadas

Quarta cidade mais populosa da China, com 15 milhões de habitantes, Tianjin só se tornou conhecida pelo mundo graças a uma biblioteca em forma de grande olho, com estantes onduladas de livros. Imagens da obra concebida pelo escritório holandês MVRDV percorreram o mundo pela internet.

Depois de Pequim e Xangai competirem pelo arranha-céu mais alto e pelas construções mais vanguardistas, o interior da superpotência asiática está dando muito poder (e bilhões de yuan) para as mais ousadas pranchetas.

No sul do país, os italianos Doriana e Massimiliano Fuksas fizeram o terceiro terminal do aeroporto de Shenzhen (de custo equivalente a US$ 1 bilhão), uma anfíbia mescla de pássaro com raia de 500 mil m², revestida de metal moldado em favos de mel e painéis de vidro.

A Bolsa de Valores da mesma cidade foi desenhada pelo holandês Rem Koolhaas, que tinha projetado a sede da TV estatal chinesa em Pequim.

Cidades que se urbanizaram muito recentemente, mas com populações acima dos 10 milhões de habitantes, como Chongqing, Kunming, Suzhou e Chengdu, não param de atrair arquitetos americanos, europeus e japoneses.

Com raros vestígios do passado, sem obstáculos de falta de recursos, de terreno ou de licenciamento ambiental, essas novas metrópoles estão atrás de turistas, investimentos, status –e, em vários casos, obras superfaturadas em esquemas com a burocracia do Partido Comunista local.

Vários vencedores do Pritzker, o Nobel da Arquitetura, estão no interior chinês. O português Álvaro Siza projetou uma usina química –em concreto aparente, sobre um lago artificial, em Huai'an, cidade de 4,5 milhões de habitantes a 400 km de Xangai.

O britânico Richard Rogers desenhou um condomínio residencial em Ningbo, seu conterrâneo Norman Foster criou um hotel de luxo em Nanjing e o japonês Kengo Kuma, responsável pela Japan House paulistana, fez um museu em Hangzhou. No país onde se espalham réplicas da Casa Branca e de vilarejos alpinos, não falta audácia com a melhor arquitetura.

TRANSIÇÃO

Mas não só os astros internacionais têm vez nesse playground arquitetônico.

O chinês Ma Yansong, 42, que se formou em Yale e trabalhou com Zaha Hadid (1950-2016), projetou a nova ópera de Harbin, a cidade mais fria do país, próxima à russa Vladivostok.

A ópera é revestida com placas de alumínio, que remetem às dunas de neve onipresentes, e tem passarelas para os visitantes escalarem o prédio por fora, levando a um terraço com 35 metros de altura.

O chinês Wang Shu, autor de um belíssimo museu em Ningbo, ganhou o primeiro Pritzker do país em 2012.

"A arquitetura chinesa não era madura há dez anos e muitos estrangeiros fizeram obras fantásticas aqui", recordou à Folha Gong Dong, fundador do escritório Vector, um dos mais premiados do país.

"Quando um político queria demonstrar seu sucesso, chamava um nome famoso internacional. Mas arquitetura é detalhamento, canteiro de obras, e muitos astros estavam longe para o acabamento. Isso fez com que vários clientes privados e do interior começassem a nos procurar. Estamos passando por uma bela transição".

Os chineses tiveram uma mãozinha do próprio presidente Xi Jinping. Em 2014, ele atacou obras "esquisitas e espalhafatosas" pelo país. "Sempre pediam algo icônico, um marco. Mas uma cidade pode ficar um desastre, entre tanto ícone, sem harmonia", diz Gong.

Para Terry Riley, ex-diretor do Departamento de Arquitetura do MoMa (Museu de Arte Moderna de Nova York), o fenômeno se explica pelas décadas maoístas, quando não havia cliente privado, escritórios independentes e as faculdades se tornaram escolas de desenho popular. "A arte do desenho se perdeu, e quem buscava criatividade procurava no exterior."

"O movimento anti-esquisitice começou contra a sede da CCTV, do Koolhaas, que era considerada pornográfica e de má sorte (sofreu um incêndio pouco antes da inauguração)", relata Riley.

INTEGRAÇÃO

Como sinal dos novos clientes, Gong, que também é professor na Universidade Tsinghua, fala de um centro comunitário em Chongqing, que parece se esconder entre colinas verdes.

"O filho da dona do empreendimento não gostou do projeto original, mais luxuoso", comemora. "O rapaz fez mestrado na Austrália, viajou pelo mundo, e quis algo mais orgânico, com materiais locais, que se integrasse à natureza".

Uma biblioteca que Gong projetou na cidade praiana de Qinghuangdao se confunde com a areia –o cliente privado quis uma biblioteca com auditório multiuso para um bairro novo com 30 mil habitantes, onde todos tivessem que colocar o pé na areia para chegar ali.

Poucos brasileiros ainda participam desse banquete. O paulistano Rafael Brych, formado pelo Mackenzie, vai para seu terceiro ano de experiência na China. "Nunca houve uma oportunidade tão gigante entre experimentação e prática como aqui, em escalas gigantes", diz. "Os prazos são muito curtos, porém."

A colega Cecilia Reichstul, que passou dois anos no país, concorda. "Há de tudo, de construtoras muito boas a outras nem tanto." Quase todas as construções citadas nesta reportagem levaram entre três e quatro anos do projeto à inauguração.


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