Folha de S. Paulo


Crítica

Livro de crônicas de tribunal relata casos dramáticos de maneira leve

LEVANTE-SE O RÉU (muito bom)
AUTOR Rui Cardoso Martins
EDITORA Tinta da China Brasil
QUANTO R$ 69

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Em 2014, assisti à peça "Ubu e a Comissão da Verdade", de Jane Taylor, produzida pela Handspring Puppet Company sob direção de William Kentridge.

O espetáculo —um diálogo com "Ubu Rei", de Alfred Jarry— encenava com bonecos as audiências da comissão que investigou violações de direitos humanos durante o apartheid, na África do Sul.

Os bonecos, objetos tão próximos ao brinquedo, davam voz a depoimentos reais sobre o horror do regime, numa mescla que beirava o despropósito —na fronteira onde vivem as obras de arte.

A mesma sensação de descompasso está em "Levante-se o Réu", de Rui Cardoso Martins, coletânea de "crônicas de tribunal" colhidas em audiências da Justiça portuguesa de 1990 a 2007. O livro reúne uma centena delas, de um total de 700, fruto de visitas ao tribunal onde se julgavam réus pegos em flagrante.

Os textos, publicados originalmente no jornal "Público", não são reportagens, embora tratem de crimes reais, em toda sua terrível diversidade.

Raul Ladeira/Divulgação
O escritor português Rui Cardoso Martins, autor de 'Levante-se o Réu
O escritor português Rui Cardoso Martins, autor de 'Levante-se o Réu'

Aliás, tiveram uma "entrada cômica nos bastidores da imprensa": os copidesques do jornal, ao toparem pela primeira vez com a "estranha narrativa", transformaram-na em "notícia de fait divers: quem, quando, como, porquê, tudo pela ordem clássica". Porém são crônicas; por isso, desconfiam das ordens clássicas, não temem a ficção e assumem a figura do autor.

A reunião de crônicas em livro costuma causar interessantes aberrações temporais, sobretudo quando são de autores diferentes.

Neste caso, os textos são de um único cronista, mas foram publicados no passado, de certa maneira para o passado, e em intervalos mais longos do que o virar de páginas.

Quando compilados, portanto, há uma espécie de compressão do tempo, dando densidade ao cotidiano do qual são feitos. Daí a impressão de retrato (da sociedade portuguesa, da natureza humana etc.) que se tem ao ler.

Entretanto, é um retrato de fotógrafo que sabe que "objetiva" é um sinônimo enganoso para a lente da câmera –o tipo de fotógrafo capaz de tomar posse do próprio olhar, tal qual o bom cronista.

O leitor brasileiro, acostumado ao estilo leve de Rubem Braga, por um lado, e ao folhetinesco de Nelson Rodrigues, por outro, perceberá a excepcionalidade dessas crônicas.

Os casos, muitos deles dramáticos o bastante para o proveito sensacionalista, são contados não só com leveza mas também com uma linguagem avessa ao clichê (língua franca do sensacionalismo), à aridez judiciária e à "paisagem lunar", nas palavras de Nelson Rodrigues, do jornalismo dominado pelos "idiotas da objetividade".

Como os bonecos da peça sul-africana, a crônica é um gênero com um quê de brinquedo, por sua abertura formal e as liberdades que se permite –ainda mais visíveis quando a lemos em seu habitat, rodeada por notícias. Empregá-la como o faz Martins, tratando de histórias dessa natureza, a aproxima da fronteira das obras de arte.

VICTOR HERINGER é autor de "O Amor dos Homens Avulsos" (Companhia das Letras)


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