Folha de S. Paulo


EUA reivindicam obras de prisioneiros de Guantánamo expostas em NY

Uma prisão de segurança máxima numa ilha no meio do Caribe corrói qualquer visão de paraíso. As ondas que formam uma imensidão azul, às vezes tingida de roxo e vermelho no entardecer, são invisíveis para aqueles encarcerados pelo governo americano no complexo penitenciário da baía de Guantánamo.

Não espanta que os detentos mantidos atrás das grades nesse enclave do território cubano controlado pelos Estados Unidos não parem de sonhar com praias desertas, banhos de mar, barcos a vela e até vistosos transatlânticos.

Oito deles plasmaram visões idílicas desse paraíso às avessas em telas e esculturas agora numa exposição em Nova York. Essas representações bastante simplórias de praias, coqueiros balançando na brisa do Atlântico e flores coloridas, no entanto, acabam revelando o lado mais perverso dessas prisões.

Quando foi inaugurada nos corredores do John Jay College of Criminal Justice, uma faculdade de direito em Manhattan, a mostra com 36 obras de oito detentos de Guantánamo, quatro deles libertados da ilha nos últimos anos, não chamou muito a atenção do mundinho "artsy".

Mas caiu como uma bomba entre ativistas e advogados, renovando discussões sobre a polêmica detenção de suspeitos nunca indiciados ou condenados e o papel da arte nesse contexto, em especial seu valor num mercado cada vez mais inflacionado.

Desde que essas peças deixaram a ilha, o Pentágono passou a barrar a saída de qualquer obra de arte do presídio, onde encarcerados têm aulas de desenho, pintura e escultura há pelo menos uma década. Essa decisão do comando militar americano tem como base a ideia de que tudo criado ali, mesmo pelos detentos, é propriedade do governo dos Estados Unidos.

Os carimbos no alto dos mastros das caravelas em miniatura criadas por Moath al Alwi, por exemplo, deixam isso claro ao dizerem que a obra foi inspecionada e aprovada por homens da Força Aérea.

Outros agentes vigiam as oficinas de arte do presídio para evitar que "imagens violentas" ou "mensagens escondidas", nas palavras de Erin Thompson, que organiza a mostra, apareçam nas obras criadas ali, uma espécie de censura que faz reinar o ar de falsa alegria das telas.

Mais alegórico desses artistas detentos, Muhammad Ansi, acusado de ser um dos guarda-costas de Osama bin Laden e depois absolvido, foi o que talvez tenha chegado mais perto de retratar a dimensão do drama vivido ali.

Um de seus quadros mostra mãos segurando flores por entre as grades de uma cela. Outro retrata um olho gigante chorando lágrimas que se misturam às ondas do mar.

Na história da arte, obras de pacientes psiquiátricos, também confinados em ambientes ultravigiados, já foram parar em museus e galerias, muitas vezes influenciando a formação de vanguardas inteiras e abrindo novos caminhos na estética.

O caso de Guantánamo, mesmo com obras que não passam de cartões-postais de um paraíso fora de alcance, parece engrossar essa tradição, mas revela talvez mais sobre as neuroses dos carcereiros e do governo do que sobre a psique dos prisioneiros.


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