Folha de S. Paulo


Contardo Calligaris revisa impressões em 'Hello, Brasil! E Outros Ensaios'

Patricia Stavis/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 25-11-2017: Retrato do psicanalista e escritor Contardo Calligaris, que lança a antologia de ensaios
O psicanalista Contardo Calligaris, autor de 'Hello, Brasil!', em sua casa, em São Paulo

Em 1991, quando o psicanalista italiano Contardo Calligaris compilou seus primeiros apontamentos sobre o país de adoção na antologia "Hello, Brasil!", carro novo por estas bandas andava mais barato do que usado, cerveja se comprava com ágio, linha telefônica era artigo que se alugava.

Dos bólidos às idiossincrasias etílicas, passando por todas as contingências políticas, econômicas e sociais que esse arco comporta, muito mudou nos trópicos desde então.

Para Calligaris, entretanto, em alguns aspectos, não há nada de novo sob o sol.

Daí a validade de revisar –e reeditar– aquelas impressões de viajante recém-chegado, como acontece agora.

"As categorias de fundo da subjetividade nacional continuam muito parecidas", diz o ensaísta, também colunista da Folha. "O colonizador e o colono que falam em nós –em algum momento, comecei a tratar dos brasileiros como 'nós'– não mudaram."

O colonizador, explica, é aquele que busca no Novo Mundo o gozo que a terra-mãe lhe negou, aquele que vem aqui exercer sua potência, saquear e devastar –não custa lembrar que "Psicanálise da Estranha Civilização Brasileira" é o subtítulo do livro lançado em São Paulo nesta terça, pela Três Estrelas, selo editorial do Grupo Folha.

"O modelo do colonizador é o do menino levado ao bordel pelo pai aos 15 anos, para 'fazer o que quiser'. Continua sendo a figura que prevalece na vida pública do país."

O arquétipo antagonista a esse seria o do colono, que aportou em território desconhecido para fazer a vida, criar para si um nome, forjar-se cidadão por inteiro, status negado a ele em seu porto de partida.

"O Brasil elegeu pelo menos três presidentes dentro desse ideal do colono, de construção de uma nação: Fernando Henrique Cardoso, Lula e Dilma", afirma o psicanalista. "Mas nenhum deles conseguiu governar sem a voz do colonizador."

No que tem de investida contra o patrimonialismo, a Operação Lava Jato se situa positivamente no lado do colono, estima o escritor. Mas daí a dizer que passou o país a limpo, como pretendem certos segmentos, há um abismo colossal.

"Ela é só um episódio. Quando aspira a uma mudança no país, o colono é muito facilmente caudilhista. Poderá nos livrar do colonizador em nós, mas seria interessante que o preço disso não fosse a volta a uma esperança fascista. Disso o colono é perfeitamente capaz, de votar em um [Jair] Bolsonaro, em um pai severo que restabeleça a ordem", diz ele.

A terceira imagem que ele ainda julga pertinente como síntese do país, passados 26 anos da publicação original de "Hello, Brasil!", é o espectro da escravidão a pairar sobre as relações interpessoais, sobretudo as de poder.

Patricia Stavis/Folhapress
SAO PAULO, SP, BRASIL, 25-11-2017: Retrato do psicanalista e escritor Contardo Calligaris, que lança a antologia de ensaios
O psicanalista Contardo Calligaris, autor de 'Hello, Brasil!', em sua casa, em São Paulo

"A criminalidade no Brasil continua sendo seduzida pela ideia de impor o poder ao corpo do outro. Não é só te roubar o celular. Preciso fazer isso te metendo uma faca no pescoço ou uma arma na cara, porque no fundo esse é o meu gozo: te dominar", exemplifica o psicanalista.

"Isso para não falar nas recentes tentativas de mudança na lei do trabalho escravo [no sentido de tornar menos rígida sua caracterização]."

ANTROPOFAGIA

Mas algo mudou, sim, desde a primeira encarnação dos ensaios. Foi o entendimento do italiano educado na academia francesa sobre a prática da psicanálise no Brasil –e, de forma mais ampla, sobre a aversão tropical a métodos estritos e filiações puras.

"A França é um país vertical, onde o argumento de autoridade é fortíssimo –quem você cita, quem é o seu mestre", compara ele. "Hoje, penso diferente: qual a relevância de saber se somos lacanianos ou freudianos? Zero. Se tenho contas a prestar a alguém, é aos meus pacientes."

Radicado no Brasil desde 1989 (com um hiato entre 1994 e 2004, quando deu aulas nos EUA), Calligaris diz não saber se quem mudou foi o país ou ele. "Minha sensação é de que foi o país, e para melhor. Mas é claro que os amigos franceses brincam que o Brasil fodeu comigo."

A resistência inicial à antropofagia tupiniquim, cogita ele, talvez se devesse ao medo de "acabar como o bispo Sardinha: devorado, digerido e defecado".

Se a voragem antropófaga ainda lhe escapa, ele hoje se diz adepto da versão "light": a geleia geral tropicalista. "Leio Hegel, ouço Gal Costa, bebo Coca-Cola", diverte-se.

Há também, na nova introdução aos ensaios, a preocupação em estabelecer que o autor dispensará, em sua leitura da psique brasileira, filtros e fórmulas que remetam ao pitoresco, ao exótico ("aquilo que resume tudo a um fusca, uma negra e um violão"). Defesa preventiva?

"Desde o século 16, o Brasil é abordado no exterior em duas tonalidades: ou como lugar edênico, mas com um lado sórdido (praias maravilhosas e putas baratas de 14 anos; tudo entra no mesmo folder turístico), ou como país que deveria aspirar a ser como a Europa –definido, portanto, pela falta", define ele.

"Acho que o livro fugiu disso, busca articular a identidade nacional a partir de conflitos internos, oposições, sonhos que viram pesadelos."

Não que a história do país seja pontuada por grandes embates ou convulsões sociais, frisa o autor.

"Não temos grandes ações coletivas na história nacional. A independência foi uma farsa. Poucas coisas custaram de fato esforço ou paixão conjuntos. Isso tem um preço: não temos a sensação de pertencer a uma comunidade de destino, de estar no mesmo barco".

No que o Brasil não se presta a uma leitura tão cristalina é na relação entre adultos e crianças –ou, para ser mais preciso, na deferência à infância que Calligaris acredita atingir aqui seu paroxismo.

"Idealizamos a infância como potencialidade de realizar todos os futuros dos quais nos sentimos frustrados", diz. "Por isso, apesar de termos consciência da má qualidade do ensino fundamental e médio no país, penamos para exigir que nossos filhos se esforcem mais. Tolerar que uma criança responda de fato à exigência escolar não está ao alcance dos pais brasileiros."

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Hello, Brasil! - E Outros Ensaios
Contardo Calligaris
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'Hello, Brasil! E Outros Ensaios' será lançado em São Paulo nesta terça-feira (28). O autor fará sessão de autógrafos das 19h às 21h30, na Livraria Cultura do Conjunto Nacional (av. Paulista, 2.073, tel. 11-3170-4033).

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HELLO, BRASIL! E OUTROS ENSAIOS
AUTOR Contardo Calligaris
EDITORA Três Estrelas
QUANTO R$ 49,90 (296 págs.)


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