Folha de S. Paulo


Novo álbum é uma receita para superar eventos ruins, diz Björk

O coração de Björk não está mais partido e seu novo disco, "Utopia", confirma isso.

Resposta ao seu álbum anterior (fruto do fim do longo relacionamento com o artista americano Matthew Barney), a artista islandesa, 52, define o mais recente trabalho como "algo leve, como ar, voando ou flutuando no céu" em entrevista por telefone à Folha.

"Depois dessa entrevista vou até uma loja de discos, onde costumava ir na adolescência, encontrar meus amigos do Sugarcubes (banda pela qual ficou conhecida nos anos 1980). Celebraremos o álbum lançado e acho que só lá vou sentir o que isso significa", ela conta de Reykjavik, na Islândia.

Nascida na metade dos anos 1960, ela foi influenciada pelo movimento punk e depois pelo florescimento das raves e da música eletrônica. Compositora e multi-instrumentista, ganhou projeção como vocalista e líder do grupo de rock alternativo The Sugarcubes (1986-92), primeira banda islandesa a fazer sucesso fora do país.

Mas foi ao lançar seus dois primeiros discos em carreira solo, "Debut" (1993) e "Post" (1995), que Björk se tornou um ícone mundial ao unir sonoridade vanguardista e música pop –ela teve 14 indicações ao Grammy e uma ao Oscar.

Além de escrever e co-produzir seu mais recente álbum "Utopia", editou e estruturou sozinha todas as faixas. Para o disco, montou uma orquestra de flauta islandesa com 12 membros. Também escreveu um arranjo para o coral Hamrahlíðarkórinn. Sobre um possível show no Brasil, ela diz não ter planos concretos ainda.

Embora tenha concebido "Utopia" antes da vitória de Donald Trump, ela diz que a sucessão de acontecimentos depois da eleição do republicano fortaleceu a mensagem do seu trabalho, de que é possível lutar por um mundo melhor. "Utopia", afirma, serve de receita para "um novo começo depois de eventos ruins".

O otimismo de Björk não está só nas suas músicas mais atuais. Em outubro, ela decidiu fazer uma acusação pública de assédio contra o cineasta Lars Von Trier –sem nomeá-lo– quando gravava o filme "Dançando no Escuro" (2000) –ele negou o crime.

"Foi muito doloroso tocar no assunto de novo, mas acho que, se você quer que o mundo mude –e no meu caso eu tenho uma filha adolescente, quero deixar um mundo melhor pra ela– eu acho que você precisa fazer uma contribuição, e essa foi a minha."

*

Folha - "Utopia" é seu décimo álbum. Você sente que é um marco da sua história?

Björk - Um pouco... O meu álbum anterior, "Vulnicura", foi tão dramático, mas a mixagem foi muito rápida. Com esse foi o oposto. Foi muito fácil escrever as músicas, mas quando a mixagem começou tudo demorou muito mais, então aquele momento de alívio e comemoração não chegava.

Você disse que "Vulnicura" foi o inferno e "Utopia" seria o paraíso. Qual é a relação entre os dois?

Acho que o arranjo de cordas de "Vulnicura" tinha muita gravidade e as letras são enfatizada por essa narrativa de coração partido. Com "Utopia" fiquei muito atraída por flautas e sintetizadores que soassem como pássaros e coisas humanas. Eu queria imitar algo como a textura do ar com as flautas, bastante otimista.

E como isso se relaciona com o que está acontecendo politicamente no mundo agora?

Enquanto eu fazia tudo isso, um ano depois, Trump foi eleito, então foi muito estranho. Minha intenção pessoal com "Utopia" era a receita para um novo começo depois de eventos ruins, e isso pareceu um espelho para o que estava acontecendo na política.

Então fiquei mais confiante que esse seria o ponto onde eu poderia exagerar, então ele se tornou não só sobre uma utopia, mas também sobre o que queremos que aconteça e o que realmente acontece, e como isso se mistura.

A utopia é um sonho do que queremos, e se só metade disso se tornar realidade já é o suficiente. Pra mim é interessante como os seres humanos fazem isso acontecer, porque cada um tem sua maneira.

Parte de seus fãs dizem que seus trabalhos mais antigos, como o disco de estreia "Post", "Homogenic" e "Vespertine" não precisam de tanto contexto para serem compreendidos quanto seus trabalhos mais recentes. O que você acha disso?

Discordo. Acho que eu poderia falar do "Debut" tanto quanto poderia falar do "Utopia". Acho que o que acontece é que antes você só falava com a mídia. Mas com certeza poderia falar muito de todos, especialmente do "Debut" e do "Post", fiz muita coisas neles, faço bem menos agora...

Antigamente era muito diferente, agora a gente pode fazer muita coisa on-line e alcançar muita gente. Antes você tinha que viajar para cada país e conversar com cada jornalista pessoalmente. As ideias, o esforço e a importância sempre foram os mesmos.

Recentemente você acusou de abuso um diretor dinamarquês e a repercussão foi enorme. Como você se sente desde então?

Eu sou otimista. Há 17 anos, quando tudo aconteceu, jamais poderia falar qualquer coisa porque ninguém iria me levar a sério. Agora nós estamos vivendo uma revolução feminista e pessoas estão ouvindo quando mulheres falam sobre essas coisas.

Acho que a minha contribuição foi contar minha história e eu espero que tenha ajudado. Eu venho de um país que tem um dos melhores índices de igualdade entre os sexos, tenho muita sorte de sempre ter feito minha música, ser independente, então quando saí de lá o contraste foi óbvio. Estou feliz que as coisas estejam mudando.

Considerando o que você anteriormente disse sobre a Islândia, você sempre pareceu estar acima de conceitos de feminilidade. A nudez, quando aparece em seus vídeos, não tem conotação sexual. Como você percebe a feminilidade e qual é a relação dela com o seu trabalho?

Essa é uma grande pergunta. Acho que grande parte é intuitivo... por causa do país onde cresci, ter vivido a geração punk, essa cena em que as pessoas usavam roupas largas como uma negação do sexo.

Trabalhei por dez anos, na adolescência, em bandas só com meninos, e nunca fui tratada diferente. Acho que sou realmente abençoada por vir de um país em que essas coisas são saudáveis, então muito disso é natural pra mim, não é calculado.

Com certeza notei uma diferença muito grande quando comecei a viajar para outros países, comecei a perceber a estrutura do patriarcado e isso me pegou de surpresa, eu não conseguia entender.


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