Folha de S. Paulo


Análise

Vídeo de soldado norte-coreano em fuga parece cinema, não guerra

Fuga de desertor norte-coreano

O diretor canadense David Cronenberg disse certa vez que "de todas as formas de tradução sensível da realidade, o cinema é a menos confiável". A pouca confiabilidade é proporcional à aparência de realidade que transmite.

Face às imagens da fuga espetacular do desertor norte-coreano, divulgadas em 22/11 pela ONU, a primeira reação, quase instintiva, é dizer: "Isso aconteceu porque eu vi".

É bem possível que tenha acontecido mesmo. Sabemos que a Coreia do Norte vive sob um curioso regime político que se poderia denominar comunismo dinástico. Regime de controle feroz, constante, sobre seus habitantes.

Sabemos disso não só pela publicidade dos inimigos do regime (EUA à frente, claro), como por fontes insuspeitas, como o documentarista francês Claude Lanzmann em seu filme "Napalm".

Fora isso, pouco sabemos, além de relatos horríveis a esse respeito, fotos que deixam claro o militarismo que ordena o país ou informações que esporadicamente trazem repórteres convidados a visitá-lo, e de que a mais memorável é que a companhia Air Koryo não é tão ruim quanto se diz.

O vídeo da ONU: parece claro que ao menos uma parte das imagens não provêm de câmeras de segurança. Durante a fuga do carro, elas não só executam um movimento panorâmico como uma aproximação em zoom. A ONU não esclarece se mantém um cinegrafista sempre atento na fronteira das Coreias. Ou até mais de um, já que um corte nos leva a outro ângulo.

No mais, o filmete nos chega em montagem impecável: o carro em disparada (na direção da fronteira, supõe-se); a corrida dos guardas, cada vez mais agitada. Volta ao carro, que desaparece da imagem. Corte para o exterior do veículo: um homem sai cambaleando. Os guardas, que antes corriam agitados, param junto ao carro e passam a atirar.

Esse plano só pode provir de câmera de segurança, a menos que um cinegrafista suicida se postasse diante dos atiradores norte-coreanos. A ONU não explicou ainda por que haveria uma câmera em posição tão adequada para o registro do tiroteio.

Por fim, vemos os guardas norte-coreanos meio aturdidos após (acredita-se) o evento e, depois, a imagem distante de soldados da ONU (ou sul-coreanos) resgatando o fugitivo. Notícias informam que ele foi resgatado e passa bem, obrigado.

Mais espantosa que a precisão da filmagem é a montagem, que alterna ângulos de visão à maneira clássica, tal como D. W. Griffith a concebeu.

Quem montou o filme? Não se informa. É como se a sequência de imagens chegasse a nós do modo como vieram ao mundo. No entanto, existe montagem, portanto, existe manipulação, produção de sentido a partir de certo agenciamento de imagens.

Se as imagens da ONU suscitam esse tipo de dúvida, por que acreditar, então, nas imagens de Claude Lanzmann? Por várias razões que não vêm ao caso, mas, sobretudo, porque ele deixa claro, todo o tempo, que são imagens feitas sob severa vigilância.

Talvez por isso podemos ver algo nunca visto (por mim) de Pyongyang: a avenida larga, os arranha-céus, a aparência de limpeza impecável. Depois, o gosto por monumentos e escadarias, por vezes pequenas, como as que aparecem nas imagens do soldado em fuga.

Ao monumento aos "queridos" Kim Il-Sung e Kim Jong-Il, os pais da pátria e da dinastia Kim, acorrem estudantes e outros para depositar flores. Cerimônia encomendada ou adoração compulsória? Qualquer dessas hipóteses é plausível.

Também os jardins parecem estar por toda a parte, com esse mesmo formato que têm no vídeo da ONU: deixam o sentimento de um país ambientalista (das bombas atômicas não se faz referência), com plantas desenhadas com cuidado, como num jardim de "Alice no País das Maravilhas" -que, como se sabe, é uma sucessão de horrores.

As imagens neutras, controladas, produzidas por Lanzmann se aproximam mais de dar a ideia de uma ditadura cruel do que as da fuga espetacular divulgadas pela ONU.

Estas lembram mais um inócuo filme de ação do que um incidente militar.


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