Folha de S. Paulo


crítica

Trio de atrizes revive no teatro a obra de Nobel bielorrussa

Guga Melgar/Divulgação
ORG XMIT: 224401_1.tif Automobilismo - Fórmula 1 - Grande Prêmio do Brasil, 2002: ao lado da linha de chegada em Interlagos, em São Paulo (SP), Pelé não percebe a passagem da Ferrari de Michael Schumacher e não lhe dá a bandeirada de vitória. Brazilian soccer star Pele waves the checkered flag at the end of the Brazilian Grand Prix in Sao Paulo, Brazil on Sunday March 31, 2002. Germany's Michael Schumacher of Ferrari won the race.(AP Photo/Dario Lopez-Mills)
As atrizes Carolyna Aguiar, Luisa Thiré e Priscilla Rozenbaum

A GUERRA NÃO TEM ROSTO DE MULHER (muito bom)
QUANDO sex. e sáb., às 21h, dom., às 18h; até 17/12
ONDE Teatro Faap, r. Rua Alagoas, 903, tel. (11) 3662-7233/ 7234
QUANTO R$ 50 a R$ 60; 14 anos

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O livro "A Guerra Não Tem Rosto de Mulher", de Svetlana Aleksiévitch, é escrito a partir de relatos e narrativas de mulheres soviéticas que participaram da Segunda Guerra. Em toda a obra, são poucas as palavras escritas pela autora. O trabalho criativo está na edição do material e, principalmente, na escuta paciente das mulheres que contam o que viveram.

Como escritora, a bielorrussa, Nobel de Literatura de 2015, é uma espécie de documentarista. Parte da força de seus livros reside na habilidade com que evidencia silenciosamente que o fato narrado não é só o fato, mas também a memória fraturada, a dor da lembrança, o trauma.

Em "A Guerra...", as narrativas sobre o passado estão atreladas à interlocução no tempo presente. Sempre nos lembramos de que a autora está lá, sentada com um gravador diante daquelas mulheres falando do conflito.

O espetáculo dirigido por Marcelo Bosschar mantém vivo o fundamento estrutural do livro. A interpretação das três atrizes parte quase sempre do mesmo pressuposto dialógico do discurso.

O que vemos no palco não é a representação dos fatos descritos, mas mulheres narrando seu passado na guerra, seja para alguém invisível, seja diretamente para o público.

Com as imagens da violência, vemos o constrangimento da lembrança, a raiva que não desaparece, as cicatrizes que perduram. A estrutura do livro, reativada no espetáculo, faz passado e presente se misturarem e nos obriga a ver um projetado no outro.

Em um belo trabalho coletivo de atuação, as atrizes demonstram forte conexão com as mulheres do livro. Elas buscam compreender as reverberações do trauma na vida presente de cada uma e então, quando narram, as memórias adquirem concretude.

O palco é vazio, mas fica preenchido pelas imagens evocadas. Tudo aparece. O frio, a terra escavada ou o sangue da menstruação de todo um destacamento.

O interesse pela particularidade de cada mulher faz as narrativas ganharem reverberação maior e, como gostaria a autora, tornarem-se comentários sobre a humanidade masculina que atravessa a história.

Porém, ao mesmo tempo, a dramaturgia opta por uma operação inversa. E aqui o espetáculo se afasta do livro.

A Guerra Não Tem Rosto De Mulher
Svetlana Aleksiévitch
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Todas as referências mais específicas sobre a particularidade da Segunda Guerra são removidas dos relatos. Não se fala de alemães ou soviéticos, e o conflito que terminou em 1945 vira uma alegoria atemporal das guerras.

A tentativa é a de sublinhar o universalismo do tema. Entretanto dilui-se a força do procedimento que visa saltar do particular para o geral em uma relação dialética com a história. A ânsia pelo universalismo esbarra em superficialidades generalistas e enfraquece o próprio horizonte crítico aberto pelo espetáculo.


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