Folha de S. Paulo


Del Priore aborda modernização do país pelos olhos de escritores em obra

No terceiro volume da série "Histórias da Gente Brasileira" (ed.Leya), monumental obra sobre a evolução da vida cotidiana no país, a historiadora Mary del Priore retrata as transformações que urbanizaram e modernizaram o país entre o fim do século 19 e o começo da década de 1950.

Desta, vez, contudo, ela as aborda conforme elas foram vistas por testemunhas oculares especiais: nomes de peso da literatura brasileira (e outros autores menos famosos, mas que também merecem ser conhecidos).

"Duas grandes preocupações guiaram o livro", explicou à Folha por telefone. "A primeira foi dar voz às mais diferentes regiões do Brasil, saindo do eixo Rio-São Paulo, que acaba predominando. Em segundo lugar, que essas mudanças pudessem ser enxergadas pelos olhos dos escritores e memorialistas."

Folhapress
Multidão acompanha os resultados da apuração das eleições de 1950, momento que encerra livro lançado pela Mary del Priore
Multidão acompanha os resultados da apuração das eleições de 1950, momento que encerra livro lançado pela Mary del Priore

A lista inclui tanto algumas das figuras mais famosas do cânone literário nacional, como Manuel Bandeira (1886-1968) e Lima Barreto (1881-1922), quanto memorialistas como Carolina Nabuco (1890-1981), filha do abolicionista Joaquim Nabuco, e Hermengarda Leite Takeshita (1903-1986), professora de Franca (SP) que escandalizou sua família tradicional ao se casar com um imigrante japonês.

No livro, as reviravoltas de grande escala do período abordado —que começa com a proclamação da República, em 1889, e termina com a volta de Getúlio Vargas à Presidência pelo voto popular, em 1950— aparecem como uma espécie de prólogo.

Elas também se mostram por meio dos impactos desses eventos na vida diária das pessoas, como o pânico diante da passagem dos revoltosos da Coluna Prestes (vistos como "cavaleiros do Apocalipse", e não como libertadores heroicos, por muitos habitantes do interior do Brasil) ou a indiferença em relação a um discurso supostamente histórico de Getúlio.

"Eu queria descortinar o pequeno", resume a autora. "Saindo um pouco das grandes interpretações da história, que às vezes distanciam o leitor, a intenção foi ajudar a visitar o passado: fazer com que as pessoas sintam o cheiro da comida no fogão, tenham uma ideia de como eram a sociabilidade, a música, os objetos do cotidiano."

O prestígio literário desses testemunhos históricos não significa que eles abarquem apenas a voz da elite das primeiras décadas da República, argumenta a historiadora.

"Você nota que é um Brasil muito misturado, no qual ainda quase não há uma estrutura de educação formal —gente que aprendeu a ler com a mãe ou trabalhando no armazém do pai, que pegava no cabo da enxada aos quatro anos de idade, frequentando escolas onde crianças de diferentes idades ficavam na mesma turma, onde às vezes não havia giz, quadro-negro ou mesmo banheiro."

Divulgação
A historiadora brasileira Mary del Priore
A historiadora brasileira Mary del Priore

Outro fio condutor das transformações narradas é a urbanização maciça das grandes cidades, do Rio de Janeiro (então a capital do país) à Manaus do auge do ciclo da borracha.

"Surge esse desafio gerado pela colonização do imaginário: como a gente faz para ser Paris nos trópicos", explica a pesquisadora. Além do lado estético, havia o imperativo higienista —epidemias como a febre amarela ainda matavam milhares de pessoas em pouco tempo nas condições insalubres das metrópoles.

E, é claro, havia o fascínio com os avanços tecnológicos: luz elétrica, água encanada, bondes, automóveis, telefones, o rádio. "O curioso é que, enquanto estavam mergulhadas nesse ideal, as pessoas muitas vezes viviam uma intimidade ainda arcaica."

A escritora paulistana Zélia Gattai (1916-2008) conta, por exemplo, como os cavalos das carruagens que levavam caixões para o cemitério deixavam a rua coberta de estrume —avidamente recolhido pelos moleques da região, já pensando em vender o esterco para fertilizar os jardins dos palacetes da av. Paulista.

VELÓRIO DA PRIVACIDADE

Num mundo como o da segunda década do século 21, no qual cada vez menos gente registra no papel suas impressões sobre o cotidiano e no qual é fácil demais reescrever ou apagar a história pessoal no teclado virtual do smartphone, vai ser possível reconstruir o passado por métodos semelhantes?

Para a historiadora, a grande mudança tem a ver com o aparente fim da privacidade.

"Essa coisa tão lentamente construída, a noção de privacidade, algo tão caro à vida burguesa, envolvendo requintes e cuidado na vestimenta, no gestual, no mobiliário —tudo isso agora está desaparecendo. A vida íntima ficou exposta e, claro, continua cheia de mentiras."

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REPÚBLICA - MEMÓRIAS (1889-1950)
AUTORA Mary del Priore
EDITORA Leya
QUANTO R$ 59,90 (544 págs.)


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