Folha de S. Paulo


Crítica

Biografia de Jô narra três décadas de muitas vidas e arranca risadas

O LIVRO DE JÔ - UMA AUTOBIOGRAFIA DESAUTORIZADA (ótimo)
AUTORES Jô Soares e Matinas Suzuki Jr.
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 64,90 (528 págs.)

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"O Livro de Jô - Uma Autobiografia Desautorizada" pode ser lido como um fluxo de consciência editado a posteriori, as memórias mais ou menos em ordem cronológica de Jô Soares tais como compartilhadas com o jornalista Matinas Suzuki Jr.

Quem navegar pelas 528 páginas conhecerá a pré-história e os anos de formação daquele que um dia foi chamado de "Renaissance man" pelo jornal "The New York Times", dada a variedade de atividades culturais que desempenha e a qualidade que imprime a elas.

Em tom coloquial, de conversa e ilustrado por fotos de época, fica-se conhecendo os primeiros 30 anos do fluminense José Eugênio Soares, nascido no Rio Comprido em 16 de janeiro de 1938, filho único do corretor de valores paraibano Orlando Heitor Soares, o Garoupa, e da dona de casa petropolitana Mercedes Leal Soares, a Mêcha.

Pela quantidade de episódios e pela expressão dos envolvidos, são três décadas que valem por algumas vidas.

Há muita digressão, no sentido primeiro da palavra, de afastar-se do assunto em foco, o que pode ser frustrante para o leitor que quer se aprofundar em algum aspecto específico da vida de Jô.

Mas também nos outros sentidos, de viagem, passeio, excursão, o que faz ser possível ler o livro na ordem em que se quiser, abrindo-o ao acaso.

Viaja-se, por exemplo, com o então Zezinho, seu apelido de infância, e seus pais, para a Nova York dos anos 1950, seguido de uma ida de navio até a Europa, primeiro Paris, depois Lausanne, na Suíça, onde ele ficaria para estudar e ganharia o apelido de "Joe", encurtamento de "Joseph", tradução de José, como em José Eugênio Soares.

Na volta ao Rio, ainda naquela década, morando no anexo do Copacabana Palace, o artista conviveria com um verdadeiro quem-é-quem mundial e experimentaria o primeiro gosto da fama, ainda como tocador de bongô, o "Joe" Soares. Só depois, por sugestão da então atriz Theresa Austregésilo, sua primeira mulher, com quem se casou aos 21 anos, ele viraria Jô.

Três mulheres são centrais em sua vida: além de Mêcha e Theresa, Flavia Junqueira Soares, seu segundo casamento, peça importante em sua decisão de deixar a carreira bem-sucedida na Globo e se aventurar no SBT. Na emissora de Silvio Santos, ele acrescentaria uma das últimas peças a seu tabuleiro de atividades bem-sucedidas, a de apresentador de talk-show.

Theresa protagoniza um dos momentos mais tocantes da obra, a que trata do filho do casal, Rafael. O menino nasceu em 1963 com hipospádia, uma malformação genética na uretra. Anos mais tarde, os pais descobririam que a criança também era autista.

"Quarenta segundos depois do Rafa nascer, me transformei num homem atormentado", escreve Jô, referindo-se ao problema genético. Depois, aos primeiros sinais do autismo, com a desinformação da época, o casal ouve de médicos que o melhor era fazer outro filho. Jô decide que iria "fazer o menino que tínhamos", no sentido de criá-lo da melhor maneira possível. Seria uma surpresa por dia, escreve ele. Rafael morreu aos 51 anos, de câncer.

Mas o bom humor dá o tom das memórias. Jô descreve sua vida como num roteiro de sitcom: há uma risada arrancada a cada página. As figuras que passam por elas, quase todas históricas ou conhecidas do leitor, frequentemente estão em situações engraçadas.

E as desconhecidas poderiam ser personagens de programas cômicos. É o caso do ponto (antiga função no teatro da pessoa que acompanhava o texto para ajudar os atores em caso de esquecimento) que era gago. O espetáculo acabava e ele ainda estava no meio da peça.

Em outras passagens, ri-se mesmo de situações improváveis, como o acaso de o artista entrar, anos depois, no táxi do mesmo motorista que atropelou sua mãe, um acidente que acabaria por matá-la.

A fonte original de seu humor parece ser Mêcha, descrita como uma mulher avançada e liberal. Fumante numa época em que as mulheres não fumavam, teve tromboangeíte obliterante, o que a levou a amputar um dedo de cada mão. Ao voltar da cirurgia, comentou: "Vou exigir um desconto de 20% da minha manicure".

A atenção aos detalhes já presente em romances de Jô como "O Xangô de Baker Street" (1995) e "Assassinatos na Academia Brasileira de Letras" (2005) se repete aqui, como na descrição da primeira página do jornal paraibano "O Publicador" de 1º de junho de 1864, onde o leitor descobre que estão anúncios dos comércios de dois antepassados de Jô.

O livro vai até o ano de 1969, véspera da entrada de Jô Soares na TV Globo, onde começaria a ganhar a fama que tem hoje. Um segundo volume deve sair em 2018.


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