Folha de S. Paulo


Crítica

Com Reymond e Matogrosso, 'Não Devore Meu Coração' é ambicioso

Divulgação
Cauã Reymond, que interpreta um motoqueiro em
Cauã Reymond, que interpreta um motoqueiro em "Não Devore Meu Coração"

NÃO DEVORE MEU CORAÇÃO (muito bom)
DIREÇÃO Felipe Bragança
ELENCO Cauã Reymond, Eduardo Macedo, Ney Matogrosso
PRODUÇÃO Brasil, 2017, 16 anos
QUANDO estreia na quinta (23)
Veja salas e horários de exibição

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Para a maior parte do público, notadamente quem acompanha novelas de TV, "Não Devore Meu Coração" poderá ser chamado de "o novo filme do Cauã". É compreensível, pelo furor que Cauã Reymond provoca em sua legião de fãs. Mas há muito mais para destacar no intrigante longa que estreia nesta quinta nos cinemas.

Não falta ambição ao roteiro do diretor Felipe Bragança, que se arrisca numa mistura de filme de estrada, romance de formação, faroeste moderno e realismo fantástico. E se dá muito bem.

O que poderia parecer indefinição acaba moldando um gênero híbrido, mas coeso. E isso é resultado, em grande parte, do equilíbrio delicado entre os dois protagonistas da história, o motoqueiro Fernando (Reymond) e seu irmão caçula, o adolescente Joca (Eduardo Macedo).

A divisa do Brasil com o Paraguai serve de cenário. Traz, além da dualidade entre estradas inóspitas e alguns recônditos deslubrantes na mata, a carga opressora da Guerra do Paraguai (1864-1870), até hoje o combate mais violento na história brasileira.

O diretor usa motocicletas como símbolos de força em situações que podem remeter à guerra ancestral, na disputa entre gangues de motoqueiros dos dois países. No grupo brasileiro, na Gangue do Calendário (cada integrante tem como codinome um mês do ano), Fernando tem uma relação ambígua, misteriosa, com o líder do bando.

No lado paraguaio, um dos motoqueiros é primo e admirador de Basano La Tatuada (Adeli Gonzales), a menina pela qual Joca está apaixonado. Aos poucos, todos os personagens vão criando conexões mais densas, numa construção de conflitos que prevê desfechos dramáticos.

Felipe Bragança tem dois longas em codireção com Marina Meliande, "A Fuga da Mulher Gorila" (2009) e "A Alegria" (2010), e um punhado de roteiros aproveitados em filmes memoráveis.

Sua colaboração mais celebrada é com Karim Aïnouz, que dirigiu seus textos em "O Céu de Sueli" (2006) e "Praia do Futuro" (2014).

Os méritos de "Não Devore Meu Coração" começam no roteiro, com os perfis dos irmãos. Fernando, desiludido no fim de mundo que habita, combate seu tédio com o risco da velocidade em cima da moto e o sexo farto e sem consequências com as garotas do lugar. Parece temer aquilo em que sua vida se transformou.

Joca vive a primeira paixão adolescente, é assaltado pelos ecos quase fantasmagóricos da violência na região e não sabe o que fazer para seguir em frente. Parece temer aquilo em que sua vida pode se transformar.

Para adaptar os contos do escritor sul-matogrossense Joca Reiners Terron nesse filme que transita facilmente entre o real e o onírico, Bragança conta com uma preciosa ajuda de seu elenco.

Cauã Reymond se esforça muito no personagem que, entre as variações de tom no longa, fica um tanto preso no registro de um herói embrutecido e sem esperanças. Na facção teen da trama, Eduardo Macedo, ótimo, e Adeli Gonzalez conduzem bem seu romance relutante.

"Não Devore Meu Coração" tem muitos acertos, que talvez não provoquem clamor popular. Mas é um cinema inquieto, longe de qualquer zona de conforto.

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Assista ao trailer de 'Não Devore Meu Coração'

Assista ao trailer de 'Não Devore Meu Coração'


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