Folha de S. Paulo


Traumas europeus e brasileiros conectaram Frans Krajcberg à floresta

Leo Eloy/Estúdio Garagem/Fundação Bienal de São Paulo
Esculturas de madeira queimada e pigmentos naturais na obra
Esculturas feitas de madeira queimada e pigmentos naturais no trabalho "Sem Título (Bailarinas)", de Frans Krajcberg, em exposição no Pavilhão da Bienal, na 32ª Bienal de São Paulo, em 2016

Na história das atrocidades da Segunda Guerra Mundial (1939-1945), a tomada de Berlim pelo Exército Vermelho é um dos capítulos mais violentos e infames. Hitler sabia que já havia perdido a guerra, mandou destruir tudo que pudesse ser usado como prova contra os nazistas e colocou atiradores de elite no topo dos prédios para alvejar os invasores.

Morto na última quarta-feira (15), o polonês Frans Krajcberg (1921-2017), que ingressara no Exército de seu país em 1939, era um desses invasores que escapou da pontaria dos atiradores de Berlim, num dos episódios mais traumáticos de sua vida.

Ganhou algumas medalhas por bravura, em número que variava conforme a memória do artista oscilava. Uma delas teria sido entregue a ele pelo próprio Josef Stálin (1878-1953), e Krajcberg contava que havia sido roubada num dos assaltos a sua casa, em Nova Viçosa, no sul da Bahia.

Há uma névoa de imprecisão sobre o que aconteceu com as outras medalhas. Krajcberg ora dizia ter atirado as honrarias num rio em Berlim, ora falava que as tinha jogado na fronteira da Alemanha com a Tchecoslováquia.

O episódio é impreciso e nebuloso porque Krajcberg não gostava de lembrar da Segunda Guerra, sobretudo conforme a idade ia avançando. Tentei entrevistá-lo sobre a tomada de Berlim, mas ele educadamente empurrava a conversa para frente.

Leo Eloy/Estúdio Garagem/Fundação Bienal de São Paulo
Esculturas de madeira queimada e pigmentos naturais na obra
Esculturas feitas de madeira queimada e pigmentos naturais no trabalho "Sem Título (Bailarinas)", de Frans Krajcberg, em exposição no Pavilhão da Bienal, na 32ª Bienal de São Paulo, em 2016

Traumas não faltaram na vida de Krajcberg, e eles parecem ser essenciais para entender o tipo de arte que ele fazia, principalmente pelo viés político que adotou.

Nascido na Polônia numa família de comerciantes pobres, Krajcberg teve a família exterminada num campo de concentração. Numa das batalhas das quais participou, acabou soterrado. Foi salvo por um amigo.
Sua mãe, dirigente do Partido Comunista, foi enforcada quando os nazistas invadiram o território polonês.

Veio para o Brasil em 1948, depois de estudar arte em Stuttgart e em Paris, e aqui enfrentou outro trauma.

Por recomendação de Lasar Segall (1891-1957), seu amigo, foi trabalhar na Klabin, no norte do Paraná, numa fábrica de papel, quatro anos depois de sua chegada. Ali viu a destruição das florestas de araucárias e a expulsão dos índios de suas terras.

Sobre esses anos, ele falava abertamente:

"Desde que eu deixei Stuttgart, eu era um homem perdido. Odiava os homens. Fugia deles. Levei anos para entrar na casa de alguém. Eu me isolava completamente. Eu bebia, fumava muito. A natureza soube me dar a força e me deu o prazer de sentir, pensar e trabalhar. Sobreviver. Eu andava na floresta e descobria um mundo desconhecido. Descobria a vida. Mas o sol era sempre vermelho e o céu nunca azul. Tinha fumaça dia e noite. As árvores eram como os homens calcinados durante a guerra. Não aguentei. Troquei minha casa por um bilhete de avião para o Rio."

Em 1957, um ano depois de ter-se mudado para o Rio, Krajcberg expôs na Bienal telas abstratas que remetiam às samambaias que via no norte do Paraná.

Curiosamente, não foi no Brasil que ele começou a usar a natureza diretamente nas obras, em telas feitas de terra e pedra, mas em Ibiza, na Espanha, para onde começou a viajar em 1958.

O grande crítico francês Pierre Restany (1930-2003) diz que a partir desses trabalhos a natureza passou a ser seu estúdio, seu objeto de estudo e seu meio de expressão.

Não há nem um pingo de ingenuidade nessas obras, como ocorre com muitos artistas ditos ecológicos.

Krajcberg evocou tudo que aprendeu com o artista alemão Willi Baumeister (1889-1955), seu mestre em Stuttgart, apesar de ter rejeitado o concretismo, por considerá-lo excessivamente mental.

Como os novos realistas com quem sentia afinidade automática no começo dos anos 1960, passou a se apropriar de coisas do mundo.

Usou também elementos da op-art e da arte cinética com inventividade única, como se viu nas obras espantosas apresentadas na última Bienal, em 2016.

Não deixa de ser um acinte à sua memória e aos traumas pelos quais ele passou que uma socialite como Bia Dória, mulher do prefeito João Doria (PSDB), copie descaradamente seu trabalho.


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