Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Biografia sobre Jorge Zahar mostra como ele formou leitores

A MARCA DO Z (muito bom)
AUTOR Paulo Roberto Pires
EDITORA Zahar
QUANTO: R$ 59,90 (296 págs.)

Durante anos o editor Jorge Zahar sonhou em oferecer para o leitor brasileiro "A História da Arte", de E. H. Gombrich, um livro que, na época em que trabalhava como livreiro, lembrava de ter vendido em inglês e espanhol.

Era uma aposta intuitiva, a qual esbarrava no alto custo de produção. O clássico do crítico austríaco, repleto de reproduções a cores, demandava uma qualidade de impressão com a qual Jorge não estava acostumado.

A decisão de correr o risco veio durante a Feira de Frankfurt de 1977, quando ele se deparou com a versão finlandesa do livro. O raciocínio –tortuoso, mas que prova a incorruptível vocação de um editor– foi o seguinte:

Gabriel de Paiva / Agência "O Globo"
O editor Jorge Zahar, no Rio, em 1998
O editor Jorge Zahar, no Rio, em 1998

"A Finlândia tem 5 milhões de habitantes. O Brasil, 120 milhões. De 120, se tira metade, que não consome. Tira a outra metade, que nunca pensou em ler. Corta a outra metade, que nunca viu um livro de arte. Sobram 15. Divide isso ao meio, ainda dão 7,5 milhões de 'finlandeses'. Tem que dar".

Deu. "A História da Arte" de Gombrich repetiu entre nós a trajetória internacional de livro de referência para estudantes, professores e artistas, vendendo mais de 130 mil exemplares. No meio editorial, nem sempre se consegue adivinhar o interesse dos "finlandeses" do Brasil (ou dos "finlandeses" do mundo inteiro), mas Jorge Zahar –morto em 1998, aos 78 anos– chegou bem perto disso.

O perfil biográfico "A Marca do Z", de Paulo Roberto Pires, mostra como foi possível esse quase milagre: ensinar a gerações inteiras o que era indispensável ler em ciências sociais e políticas, filosofia, mitologia, antropologia, psicanálise, música erudita, artes plásticas, gastronomia, matemática e até livros clássicos de aventura e entretenimento vestidos de forma mais atraente, como "O Conde de Montecristo" e os sete volumes com as obras completas protagonizadas por Sherlock Holmes.

A Marca do Z
Paulo Roberto Pires
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Biografia é catálogo, acredita Pires que, ao contar a vida do editor filho de pai libanês e mãe francesa, trata sobretudo da casa fundada em 1957 no Rio com o nome da família: Zahar Editores. O primeiro título com o logotipo característico –um grande Z cortado por um livro aberto– foi o "Manual de Sociologia", de Jay Rumney e Joseph Maier, que também inaugurou a mítica coleção Biblioteca de Ciências Sociais.

Em 1985 ele começou do zero uma nova empresa, Jorge Zahar Editor, tendo como sócios os filhos Ana Cristina e Jorginho, que até hoje tocam o negócio. Ao todo são mais de 3.000 títulos publicados.

Na Europa e EUA são comuns as memórias de editor. No Brasil, não. Os mais importantes profissionais do ramo não deixaram testemunhos sobre si mesmos, e muito raramente viraram alvo do interesse de biógrafos.

Para ter uma ideia da pobreza, a página da Wikipédia dedicada a Ênio Silveira tem duas linhas, uma das quais para dizer que ele foi do Partido Comunista Brasileiro. Ora, Ênio –melhor amigo de Jorge, ao lado de Paulo Francis–, à frente da Civilização Brasileira, montou uma editora ágil e eclética, a qual, entre 1961 e 1963, chegou a publicar um livro por dia. Outros tempos, outro país.

Essa lacuna de informação está preenchida, ao menos em parte, por "A Marca do Z".

MERCADO EDITORIAL

É impossível entender a modernização do mercado editorial sem participação da Zahar. Além de garantir a qualidade e sofisticação de autores e livros, Jorge logo percebeu que devia formar uma equipe de tradutores profissionais (Octavio Alves Velho o principal deles) e cuidar com esmero da apresentação gráfica (o designer húngaro Érico Monterosa criou toda a identidade visual da casa, incluindo o vistoso Z).

No mais, houve um incrível boca a boca –que em muitos casos é mais decisivo que a publicidade– entre um público jovem e intelectual, principalmente o das universidades. Só faltava "aquele" livro para marcar, e ele veio com a publicação, em 1962, de "História da Riqueza do Homem" (mais de 300 mil exemplares vendidos).

"Foi dos livros que melhor encarnaram o espírito da editora, tanto pelo êxito gradual e consistente quanto pela comunhão de interesses entre editor e autor", escreve Paulo Roberto Pires.

A obra de Leo Huberman mexeu até com a vida íntima do editor. "História da Riqueza do Homem" foi indicado como leitura no tradicional Colégio Bennett, onde os três filhos do editor estudavam. Mas o professor que fez a indicação se viu obrigado deixar o colégio, depois do golpe de 1964, apontado como "comunista". Jorge fez o mesmo: tirou os três filhos de lá.

Homem discreto, apreciador de uísque e sinuca, leitor de Drummond e Baudelaire, conversador das madrugadas, grande formador de leitores. O livro que acaba de sair lhe faz um retrato fiel.


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