Folha de S. Paulo


Esclarecedor, livro sobre lutas na rede não seria necessário no mundo ideal

Num mundo ideal, um livro como "A Vítima Tem Sempre Razão?", de Francisco Bosco, não seria necessário.

Não seria necessário porque não haveria minorias cujos direitos são sistematicamente desrespeitados e porque não ocorreriam linchamentos morais instantâneos que não dão chance de defesa ao suposto agressor.

Ou nem isso. Até pessoas que nada fizeram além de ter uma identificação forte com um dos lados das chamadas guerras culturais têm sofrido ataques nas redes sociais.

Como, porém, nós vivemos num mundo que está longe da perfeição, no qual, apesar dos notáveis progressos das últimas décadas, ainda resta muito a avançar tanto na universalização dos direitos coletivos quanto na aceitação de garantias individuais como o princípio da presunção de inocência, o livro é necessário e aparece num momento bastante oportuno.

Tanto no Brasil como no exterior, não há uma semana sem que novos casos venham à tona.

Uma lista curta de ocorrências recentes inclui a tentativa de barrar a conferência da filósofa feminista Judith Butler, os protestos contra a exibição de um documentário sobre um intelectual de direita e denúncias de assédio sexual envolvendo personalidades de Hollywood, sem mencionar o rumoroso caso William Waack.

Bosco procura analisar fenômenos dessa natureza sem perder de vista a complexidade da matéria nem o desejável equilíbrio entre direitos identitários e individuais.

Como estamos falando de um livro, que exige um certo tempo para ser produzido, a lista de casos estudados pelo autor já sai um pouco velha: marchinhas de Carnaval (Bosco defende o direito de blocos tanto de executar como de não executar essas músicas e aplaude o fato de termos passado a discutir a naturalização dos preconceitos na linguagem), a polêmica sobre o uso de turbante por brancos (ele sustenta que todos podem usar tudo, mas rejeita a acusação de racismo reverso que chegou a ser feita ao movimento negro), o clipe de Mallu Magalhães (considera o vídeo infeliz por perpetuar estereótipos negativos de negros hipersexualizados) e alguns outros que tiveram menor repercussão, mas que nem por isso são menos interessantes.

Concordo com a maior parte dos posicionamentos do autor, mas tenho várias diferenças em relação ao grau com que são colocadas. A mais importante delas diz respeito à liberdade de expressão. Bosco, é claro, defende o instituto, mas o põe só pouco acima de outros direitos, notadamente o direito ao reconhecimento social.

De minha parte, embora não chegue a erigir a liberdade de expressão como um direito absoluto, penso que, se ela não tiver uma proteção constitucional bastante robusta, que a coloque perceptivelmente acima de outros princípios, torna-se um penduricalho legal inútil. Com efeito, ninguém precisa de autorização para dizer aquilo que todos querem ouvir.

Para que a liberdade de expressão logre seu objetivo de assegurar que todas as ideias circulem e possam ser debatidas, ela precisa abarcar também teses que pareçam absurdas ou mesmo nojentas à maioria.

No mais, indivíduos e a própria sociedade são relativamente resilientes. Eles conseguem sobreviver a um ou outro insulto de vez em quando, especialmente quando se considera que os injuriados estão autorizados a se defender e devolver a gentileza no mesmo tom.

Como o próprio Bosco reconhece, ainda que em outro contexto, não podemos tratar membros de minorias como se fossem seres desprovidos de qualquer traço de autonomia que precisam ser tutelados o tempo todo.

Outro ponto em que divirjo do autor em grau é a questão das ações afirmativas. Embora não goste muito, admito que cotas e outras políticas que ele chama de desequilibrantes sejam adotadas temporariamente.

Seria preciso, contudo, enfatizar muito mais do que temos feito que se trata de remédio excepcional e com risco de efeitos adversos.

O ponto central é que, se nossa meta é construir uma sociedade mais igualitária e republicana, precisamos no mínimo ser extremamente cuidadosos e parcimoniosos quando nos valemos de instrumentos não igualitários e não republicanos, como são as ações afirmativas.

Independentemente de outras pequenas divergências, "A Vítima Tem Sempre Razão?" é um livro esclarecedor e gostoso de ler, que chega num momento oportuno.

Antes de amaldiçoar o "politicamente correto", tente ver se os grupos minoritários não têm motivos justos para se queixar de discriminação. Antes de linchar virtualmente o próximo "machista estuprador", tente pelo menos descobrir se houve mesmo um estupro.

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A VÍTIMA TEM SEMPRE RAZÃO?
AUTOR Francisco Bosco
EDITORA Todavia
quanto R$ 49,90 (208 págs.)


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