Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Santo Agostinho fixa pacto com o leitor em autobiografia

CONFISSÕES DE SANTO AGOSTINHO (ótimo)
AUTOR Santo Agostinho
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 34,90 (416 págs.)

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Não se espere das "Confissões de Santo Agostinho" o relato minucioso da vida desse filósofo cuja obra completa abarca dezenas de volumes, a maioria jamais traduzida no Brasil.

Os 13 livros vão muito além de um esforço de rememoração empreendido pelo homem maduro que visita, com olhar crítico, seu percurso existencial até se converter ao cristianismo.

Em nossa época, quando alguns defendem a impossibilidade do gênero autobiográfico, o depoimento agostiniano relembra, a cada página, o "pacto" ressaltado por Philippe Lejeune —evidência capaz de libertar a autobiografia e o diário da prisão pós-estruturalista, reinserindo-os no compromisso moral, sempre possível, que um autor estabelece com seus leitores: dizer a verdade sobre si mesmo.

O mergulho em que Agostinho nos leva é um continuum de gêneros: a poesia do Saltério —com seu caráter elíptico, seu paralelismo semântico e uma incrível variação de tons, em que se mesclam súplicas, lamentos, hinos plenos de lirismo— mistura-se às orações despojadas de fórmulas, ao exercício de dialogar com o passado por meio do enredo compreensível e às reflexões filosóficas e teológicas.

Hulton Archive/Getty Images
Retrato do filósofo e religioso Santo Agostinho (354-430)
Retrato do filósofo e religioso Santo Agostinho (354-430)

Essa variação de vozes magnetiza o leitor, abrindo-o, de forma crescente, à reciprocidade que, para Lejeune, a autobiografia cobra de nós.

De fato, os leitores correm um perigo iluminador quando abrem as "Confissões", pois o livro nos instiga a nos reconhecermos em seu testemunho. Longe de ser, como os mais apressados podem pensar, mero conjunto de catequeses escritas por um religioso da Antiguidade, o que se apresenta é a própria vida, enovelando-se em dúvidas, anseios, constatações, idas e vindas semelhantes às de qualquer pessoa com um mínimo de autocrítica.

Se fosse possível atualizar esse périplo em busca da verdade, eu diria que Edward St. Aubyn, no primeiro volume de "Romances de Patrick Melrose", aproxima seu protagonista do comportamento agostiniano quando o faz superar a violência sexual paterna, as superficialidades da vida contemporânea, a indiferença da mãe alcoólatra, os vícios e ódios a que se entrega até reencontrar sua alma, que vê "precipitando-se e contorcendo-se como uma pipa ansiando ser solta".

Confissões de Santo Agostinho
Santo Agostinho
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Agostinho, contudo, foi além. A aventura do bispo de Hipona segue o itinerário que Erich Auerbach salienta no ensaio "Sermo Humilis": depois de ler o "Hortensius", de Cícero, "inflamado com o anseio apaixonado pela sabedoria", Agostinho passa a estudar a Sagrada Escritura, decepcionando-se por não descobrir nela a "dignidade ciceroniana" —até perceber que, sem a agudeza das crianças, jamais penetraria o mistério.

Só então está pronto a escutar o que é repetido desde a eternidade. Agarrando-se a Deus, o náufrago do hedonismo resgata a si próprio e pode se referir à "beleza tão antiga e tão nova" que descobre em seu interior, em todas as coisas, pois não há mais limites.

RODRIGO GURGEL é crítico literário, autor de "Crítica, Literatura e Narratofobia"


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