Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Dúvidas rondam a autenticidade da obra mais cara da história

Quando a imagem do lote 9B no mais aguardado leilão desta temporada de vendas surgiu no telão, o burburinho cessou. Diante do quadro que entraria para a história como o mais caro já vendido em todos os tempos, uma plateia de colecionadores em Nova York segurou a respiração.

Menos de 20 minutos depois, a única obra de Leonardo Da Vinci num acervo privado seria arrematada por estarrecedores US$ 450,3 milhões, cerca de R$ 1,5 bilhão.

Os cifrões ofuscam qualquer traço de beleza da obra e todo seu passado conturbado, de restaurações problemáticas —que arranharam o rosto e os cabelos da figura retratada— às muitas dúvidas que rondam a sua autoria.

Isso porque essa tela pintada em 1500 nem sempre foi um Da Vinci. Ela esteve na coleção do rei Carlos 1º da Inglaterra não se sabe com que etiqueta, foi leiloada no século 18 e sumiu por um tempo.

"Salvator Mundi", um retrato de Cristo segurando uma esfera de cristal, depois reapareceu. No final da década de 1950, foi vendido por cerca de R$ 33 mil, um grãozinho de areia da montanha de dinheiro pela qual foi comprado na semana passada.

Foi a vingança do bilionário russo Dmitry Rybolovlev. Há quatro anos, ele pagou US$ 127,5 milhões por essa mesma obra, mas descobriu que meses antes o marchand que ofertava a peça havia pagado US$ 80 milhões por ela, o que motivou um processo ainda em curso na Justiça.

Enquanto os advogados brigavam, a Christie's prometera a Rybolovlev que venderia seu Da Vinci, mesmo com danos e dúvidas sobre sua autenticidade, por pelo menos US$ 100 milhões. Depois do acordo, fez uma campanha publicitária sem precedentes no mundo das artes visuais.

O quadro foi chamado de "cálice sagrado" e comparado à "descoberta de um novo planeta", inaugurando talvez uma nova era sem limites das vendas blockbuster, contando até com uma ambiciosa turnê de lançamento —o "Salvator Mundi" chegou a ser visto por 27 mil pessoas em Hong Kong, Londres e San Francisco antes de sua chegada triunfal a Manhattan.

Mas um detalhe contrasta com o gigantismo e a pompa em torno dessa venda. Na letra miúda do contrato, a Christie's deu um prazo de cinco anos de vencimento para a autenticidade da obra —isso quer dizer que, se a autoria vier a ser questionada depois desse tempo, o caso não pode ser levado a juízo.

O mecanismo é praxe no mercado de arte, mas acaba revestindo essa vistosa transação com um aspecto de bomba-relógio. Seu comprador —não revelado— corre o risco de ver R$ 1,5 bilhão murchar para uns trocados em pouquíssimo tempo, ostentando em sua casa o mico mais embaraçoso da história.

Não foi por acaso, aliás, que a Christie's enfiou essa tela em seu leilão de arte contemporânea. Valores nesse patamar não costumam ser pagos por arte antiga, e o hype em torno das vendas de obras deste século é sempre maior, além de elas correrem longe dos olhos de especialistas em arte renascentista.

Tanto que na plateia da Christie's, no Rockefeller Center, não havia acadêmicos. Era mesmo uma questão de dinheiro. Todo o PIB da arte mundial parecia concentrado entre os VIPs ali, como os maiores galeristas do mundo, Larry Gagosian e David Zwirner, e colecionadores graúdos como Eli Broad, que tem seu próprio museu em Los Angeles.

Reprodução
Gesto de Cristo abençoando lembra 'São João Batista', obra de Leonardo Da Vinci, no Louvre; o detalhe é apontado por especialistas como prova de autenticidade do 'Salvator Mundi
Gesto de Cristo abençoando lembra 'São João Batista', obra de Leonardo Da Vinci, no Louvre; o detalhe é apontado por especialistas como prova de autenticidade do 'Salvator Mundi'

Nenhum deles parecia se preocupar com os pontos de interrogação no ar nem com a estranheza desengonçada desse quadro, imaginando talvez como serão as vendas de arte num futuro agora inflacionado por essa venda.

Mesmo não especialistas e não bilionários, no entanto, seriam capazes de notar que o "Salvator Mundi" é um trabalho menor do mestre italiano, se é que é mesmo um Da Vinci e não uma pintura de um de seus vários discípulos.

Seu Cristo visto de frente, quase um retrato policial, não tem a graça nem a complexidade de obras como seu "São João Batista" ou a "Mona Lisa", o que torna um exagero infeliz a comparação dos que apelidaram o "Salvator Mundi" de "Gioconda homem".

Há momentos marcantes no quadro, como a coloração azul do manto, a delicadeza no contorno dos olhos e a transparência da esfera de cristal na mão de seu Cristo.

Mas a relação fundo e figura tem um aspecto um tanto desconjuntado. No lugar da leveza enigmática das obras mais conhecidas de Leonardo Da Vinci, em que a pele de suas figuras e a paisagem ao redor se roçam numa espécie de sopro, o quadro mais caro da história parece sucumbir sob o seu próprio peso de milhões e milhões de dólares.


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