Folha de S. Paulo


Artista e ecologista, Frans Krajcberg era como um animal selvagem

Danilo Verpa-23.jan.2013-/Folhapress
Retrato do artista Frans Krajcberg, na praia do Leme, no Rio de Janeiro
Retrato do artista Frans Krajcberg, na praia do Leme, no Rio de Janeiro

Frans Krajcberg passou a vida com receio de perguntas como "De onde você vem?", "Qual é seu sobrenome?", "Qual é sua religião?" e "O que faz?". Foi na natureza que encontrou uma aliada e pôde ser finalmente compreendido, passando a defendê-la como quem defende a integridade da alma.

Usou o meio de que dispunha, a criatividade artística. Gostava de dizer que seu trabalho não era arte, eram gritos com o único objetivo de escancarar a destruição da natureza. Mas sua escultura ultrapassa o discurso do artista: alcança a beleza, o sublime e a redenção, a experiência unificadora que toda grande obra proporciona.

Frans, um ermitão em busca de raízes, lutou para encontrar seu lugar num mundo que o recebeu com hostilidade. Foi um menino ávido, sabia desenhar bem e adorava pintar, contrariado por não ter dinheiro para comprar papel. Nasceu numa família de comerciantes pobres judeus em Kozienice, na Polônia, em 12 de abril de 1921, sendo o terceiro de cinco irmãos.

Interessado pelo funcionamento das coisas e suas formas, decidiu estudar engenharia e artes na Universidade de Leningrado (hoje São Petersburgo). Era uma faculdade difícil de ingressar, mas o nome de peso da sua mãe, uma liderança no partido comunista, garantiu a vaga.

Durante a Segunda Guerra Mundial, foi oficial do Exército da Polônia. O jovem Frans lutou de 1941 a 1945 e, quando voltou para sua cidade natal, vivinho para compartilhar dores e casos de guerra, não encontrou ninguém em casa. Era o único sobrevivente de uma família de quase 150 pessoas, dizimada em campos de concentração.

Ele revelou até ter visto a mãe enforcada —não conseguiu soltar o corpo, mas dele tirou uma medalha, roubada décadas depois de sua residência no sul da Bahia.

Depois da guerra, Frans decidiu se aprofundar nas artes. Imigrou para a Alemanha para estudar na Academia de Belas Artes de Stuttgart com o célebre Willy Baumeister. Lá aprendeu sobre o Bauhaus e os movimentos artísticos da época. Sentia-se mais perto do expressionismo do que do concretismo, intelectual demais para ele.

Baumeister logo percebeu o talento de seu pupilo, oferecendo-o por duas vezes um prêmio que dava a seus melhores alunos, com dinheiro do próprio bolso. Após o término dos estudos, em 1947, insistiu para que Frans se mudasse para Paris, cidade efervescente de artistas e intelectuais.

Baumeister deu uma carta de recomendação a Léger, que o indicou a Chagall, que o hospedou. Na casa de Chagall, recebeu a proposta de vir ao Brasil, como falso marido de uma húngara, proibida de imigrar solteira. Foi ao consulado afirmar estar casado com ela, embarcou no navio, ela de primeira classe, ele de terceira, e nunca mais se viram.

Assim veio Frans, já louco para ir embora da Europa e "fugir do homem", como gostava de dizer em entrevistas. Em 1948, desembarcou no Rio de Janeiro sem falar português e sem dinheiro. Dormiu dias no relento da praia do Flamengo, até conseguir emprego como operário no recém-inaugurado MAM, de São Paulo. Foi montador da primeira Bienal, em 1951, e auxiliar do pintor Alfredo Volpi. Teve reconhecimento apenas seis anos depois, ao ganhar o prêmio de melhor pintor na Bienal de 1957, ano em que se naturalizou brasileiro.

Quatro ocasiões foram fundamentais para trazer ao artista a identidade que o definiu e que ficará para a história: seu primeiro contato com o desmatamento, no Paraná, no início da década de 1950; os refúgios em Ibiza, onde ia regularmente até 1964 e nomeou a natureza como seu ateliê; o isolamento nas cavernas de Minas Gerais, na década de 1960; e as constantes viagens à Amazônia.

Ele chegou ao Paraná para trabalhar como engenheiro na papeleria da família Klabin, em Monte Alegre, por indicação de Lasar Segall –casado com uma Klabin–, e acabou se isolando na mata para pintar. Deixou de lado o cinza monocromático e começou com plantas e paisagismo abstrato, apaixonando-se aos poucos pelo que via.

Mas se deparou com as queimadas, feitas na época para o plantio do café, e a terra deserta à sua frente o remeteu aos campos de concentração. Frans, assim, se encontrava novamente com o homem destruidor: "As árvores eram como os homens calcinados durante a guerra". Nasceu ali a revolta que o alimentou.

Em Ibiza, surgiu o ímpeto de sentir a matéria nas mãos, quando passou a experimentar terra e pedras em relevos, técnica na qual foi pioneiro. Foi com elas que ganhou o importante Prêmio da Cidade de Veneza, na Bienal de 1964.

Em Minas Gerais, pesquisou a extração de pigmentos naturais, ocre, cinza, marrom, verde, uma infinidade de vermelhos, que o acompanharam desde então. Lá sentiu a necessidade de fugir da moldura convencional, do quadrado, por ter visto que a natureza não tinha formas fixas. Esse pensamento evoluiu nas grandes sombras recortadas, uma das marcas do artista.

Já suas viagens à Amazônia fizeram nascer o ecologista. Junto ao crítico de arte Pierre Restany e ao pintor Sepp Baendereck, desenvolveu o Manifesto do Rio Negro, ou Manifesto do Naturalismo Integral, em 1978, tornando-se uma das primeiras vozes contra o desmatamento da floresta.

O BARBUDO DAS PEDRAS

Frans gostava de dar apelidos e ganhou alguns sugestivos da figura carismática e excêntrica que foi, como Robinson Crusoé do século 21, Barbudo das Pedras, Poeta dos Vestígios e Tarzan.

Foi chamado de Robinson Crusoé por ser um homem cabeludo, com movimentos pausados e leves, como quem não quer atrapalhar o solo que pisa, em simbiose total com a natureza e desajustado no meio urbano.

Era conhecido como Barbudo das Pedras quando se alojou nas cavernas de Minas Gerais, raspando paredes, triturando pedras em busca de pigmentos naturais. Já Poeta dos Vestígios é o título do documentário sobre o artista, feito por Walter Salles Jr., em 1987. Eram muito amigos, faziam aniversário no mesmo dia e chegaram a comemorá-lo juntos em várias ocasiões.

O título definiu bem o artista, um homem que transformou vestígios em poesia, ressuscitou madeiras calcinadas, troncos mortos, cipós e casca de árvores, oferecendo outra significação ao óbvio, como faz a poesia.

Por fim, Tarzan remeteu à casa onde morou por mais de 40 anos. É uma casa-ateliê-museu em Nova Viçosa, sul da Bahia, construída a 12 m do solo pelo arquiteto Zanini Caldas, em cima de uma árvore de pequi de 3m de diâmetro, de onde conseguia ver melhor tudo o que amava. Morava com cachorros, galinhas e duas cascavéis, escondidas no forro quando chegavam as visitas, ou "preguiças", como as chamava Frans.

Não é para menos, ele acordava às 5 da manhã, pescava o peixe que comia, caminhava pelos seus 1,2 km² de terreno a beira-mar, entre manguezal e mata nativa, fotografando, procurando matéria-prima para seu trabalho e inspiração, e dormia com o sol poente.

Frans usou muito a fotografia para registrar o que via e mostrar formas ignoradas. Dizia que não era fotógrafo, apenas expunha fotos com suas esculturas para as pessoas entenderem de onde vinha o material que usava. Ele acabou doando seu acervo de mais de 300 obras, avaliadas em no mínimo R$ 45 milhões, ao governo da Bahia —seu herdeiro formal, por não ter parentes ou familiares.

Reconhecido mundialmente por esculturas de natureza ressuscitada, Frans não nomeava suas obras. Eram todas "Meus Gritos", dizia, por denunciarem o desmatamento no Brasil. Ele sonhava em ter espaços permanentes para expô-las.

Há um museu dedicado ao artista em Paris —o "Espace Krajcberg"— desde 2003, mas no Brasil dois projetos de acervo não saíram do papel, um em Vitória, outro no Parque Ibirapuera em São Paulo, o que deixou mágoas. Chegou a ter um lugar em Curitiba, para o qual doou 110 obras, mas o espaço foi desativado e suas esculturas deixadas de escanteio.

Na Europa, porém, foi valorizado há algumas décadas. Contou com uma importante exposição individual no Centro Georges Pompidou (1975), no Parque de Bagatelle (2005), teve obras na Saatchi Gallery de Londres, além de Ibiza, Milão, Roma, Oslo, Estados Unidos, Jerusalém. Fora do país ainda recebeu a Medalha de Vermeil —a maior condecoração de Paris— e o Enku Grand Award no Japão —foi primeiro estrangeiro a recebê-lo.

A veia ativista o levou a participar de conferências como Rio-92, Kioto-97 e Davos.

Como sua mãe, não ficava quieto diante dos horrores que via. Lutou contra o desmatamento da Amazônia, a exploração de minérios em Minas Gerais, a plantação de eucaliptos no sul da Bahia, o mercado de arte brasileiro "provinciano", a burocracia e a passividade de nossos tempos.

A exemplo do dia a dia entre o mangue e a mata de seu sítio, Frans se mostrava como um animal selvagem, que, a partir de um olhar observador e muita sensibilidade, podia atacar, usando sua voz artística com maestria.


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