Folha de S. Paulo


Idiotas não tinham veículos que têm hoje, diz Ruy Castro, que lança livro

Ricardo Borges/Folhapress
O escritor Ruy Castro em sua residência, no Rio
O escritor Ruy Castro em sua residência, no Rio

Desde que seu nome saiu pela primeira vez num texto jornalístico —sobre os 30 anos da morte de Noel Rosa, em 4 de maio de 1967, no "Correio da Manhã"—, Ruy Castro, 69, nunca mais parou de escrever para a imprensa.

"Tem 50 anos que eu publico. Nunca pensei em nada na vida que não fosse ser jornalista. Aprendi a ler muito cedo, descobri rapidamente o fascínio do jornal, aquela coisa de você olhar uma primeira página e saber que os diversos assuntos do mundo estão ali. Queria fazer parte desse universo."

E o fez em grande estilo, com uma erudição ímpar, um humor sacana e uma linguagem elegante e precisa, como mostram seus trabalhos reunidos em "Trêfego e Peralta - 50 Textos Deliciosamente Incorretos", que chega às livrarias nesta sexta (17).

A obra traz uma seleção de artigos, reportagens e entrevistas feitas por Ruy para as dezenas de publicações em que trabalhou nessas cinco décadas —além da Folha, onde é colunista atualmente, o semanário "O Pasquim", diários, como "Jornal do Brasil" e "O Estado de S. Paulo", e revistas, como "Manchete" e "Veja".

Sua mulher, Heloísa Seixas, escolheu o que entraria no livro, como já fizera em outras coletâneas de textos de Ruy (sobre cinema, música popular, literatura etc.).

"Ela teve total liberdade. A única recomendação foi que escolhesse as matérias mais provocadoras, que provavelmente não teriam nem como sair na imprensa hoje."

Com isso, o leitor encontrará odes ao cigarro e ao cocô, críticas ácidas às feministas e a políticos de esquerda e de direita e desconstruções de "heróis" como o papa do jornalismo literário Gay Talese e o escritor beat Jack Kerouac (1922-1969), de "On the Road".

Tendo entrado na faculdade (de ciências sociais) e no jornalismo em 1967, Ruy tornou-se membro ativo da geração revolucionária de 1968 e crê que "o espírito daquela molecagem" caracteriza sua vida e sua produção até hoje.

"Era uma maneira de viver, de não olhar para trás. Você não estava preocupado se seu pai cortou a mesada, se sua mãe te trata mal. O mundo estava todo pela frente, aberto para nós. E, na verdade, nunca me livrei disso, nunca evoluí", diz, rindo.

Ruy certamente não vê valor em medir evolução em termos de familiaridade com o mundo digital. "Já desisti de acompanhar. Não tenho nada disso, celular, Facebook, nada. Não adianta eu querer minimamente me atualizar, daqui a três meses vou estar superado de novo."

O que ele acompanha regularmente na internet é o noticiário, e, em tempos de "fake news", tampouco tem boa impressão.

"Enquanto a coisa estava só por conta dos jornalistas profissionais, você estava em mãos comparativamente confiáveis. Agora, não, você tem as redes sociais, com um poder extraordinário. Os idiotas sempre existiram, mas eles não tinham os veículos que têm hoje."

Apesar de execrar o jornalismo dos onlines ("É a pior escrita de todos os tempos"), compara favoravelmente a imprensa atual à dos últimos 50 anos.

"É muito melhor, os jornais são mais bem organizados, bem-feitos. O 'hard news' é mais objetivo e simples."

Vê efeitos semelhantes em sua produção. "Eu mudei, escrevo de maneira mais simples. Antigamente era um exibicionismo incontrolável."

O ENTREVISTADOR

Um dos destaques de "Trêfego e Peralta" são três longas entrevistas feitas entre 1981 e 1983: com o colunista social Ibrahim Sued, com seu amigo Millôr Fernandes (ambas para a "Playboy") e com o médico baiano Elsimar Coutinho (para a revista "Status").

Publicadas em estilo "pingue-pongue", elas misturam a informalidade de um bate-papo bem-humorado com a seriedade de um duelo entre entrevistador e entrevistado.

"Dá para perceber ali que o entrevistador se preparou para burro. Levei uma pauta, por escrito, com 400 perguntas. O começo das entrevistas costuma ser um bate-bola simpático. Até que, tendo conquistado a confiança do cara, você vai fazendo as perguntas que interessam, de uma maneira que dê impressão de naturalidade."

Sem nenhuma naturalidade, o repórter da Folha se aproveita de uma questão que ele usou com Ibrahim Sued: há alguém que você respeite e considere apto para ser o próximo presidente?

"Não, mas, se você me perguntasse isso em 1981, 91, 2001, 2011, a resposta seria a mesma. Não consigo imaginar ninguém a quem eu delegasse os poderes para me presidir. Falei isso dos militares, do Tancredo, do Sarney, do Collor, do Itamar, do Fernando Henrique, do Lula, da Dilma e falo hoje do Temer."

Não seria uma visão por demais niilista? "Olha, não sei se tenho tempo e estômago para ficar pensando diferente. É como se já não fosse mais meu departamento."

Refletindo, tenta explicar a origem de seu estado de descrença atual, que tem nítida relação com a fase calamitosa do Rio que esse mineiro adotou ainda jovem.

Trêfego e Peralta - 50 Textos Deliciosamente Incorretos
Heloisa Seixas (Org.)
l
Comprar

"Sempre acreditei numa certa capacidade do Brasil de dar a volta por cima, de superar, como o Rio tem. O Rio teve Brizola, Moreira Franco, Garotinho, a mulher do Garotinho, e sobreviveu a essas calamidades todas. Aí vem o Sérgio Cabral e o estrago foi tão grande que talvez nem o Rio consiga sobreviver."

Melhor, então, tratar de um Rio de outra época: o dos anos 1920, tema de seu próximo livro, cuja pesquisa foi iniciada há menos de um ano e ainda consumirá mais dois.

"Esse livro tem uma coisa inteiramente inédita para mim: não preciso entrevistar ninguém. Está todo mundo morto."

*

TRÊFEGO E PERALTA
AUTOR Ruy Castro
EDITORA Companhia das Letras
QUANTO R$ 55 (336 págs.)


Endereço da página:

Links no texto: