Folha de S. Paulo


Ator marcha para o precipício em novo romance de Fernanda Torres

Bruno Santos/Folhapress
A atriz Fernanda Torres lança seu segundo romance, 'A Glória e seu Cortejo de Horrores
A atriz Fernanda Torres lança seu segundo romance, 'A Glória e seu Cortejo de Horrores'

Foi-se o tempo em que um arauto da desgraça lembrava o papa entronado do caráter efêmero da glória. Quem hoje desfruta do status máximo vai desabar, cedo ou tarde —e a queda pode ser cruel.

Mario Cardoso, o ator que marcha para o precipício no novo romance de Fernanda Torres, sente o gosto da derrocada numa encenação do "Rei Lear", de Shakespeare.

Era para ser a volta por cima do artista sexagenário numa carreira outrora coruscante de galã da TV (Globo, obviamente). Seria seu reencontro com a vertente dos textos consagradores do teatro, a mesma que o retirara do anonimato na juventude.

Mas a peça desmorona. O suave fracasso no Rio torna-se um desastre na temporada paulistana. O crítico do jornal "metido a 'New York Times'" desanca o espetáculo. Mario tem ataques de riso no meio das funções e acaba cancelando a empreitada.

TRAGÉDIAS PRIVADAS

É o início de uma saraivada lançada sobre o protagonista pela trama de "A Glória e seu Cortejo de Horrores". A seguir, Mario descobrirá que a mãe está demente e que seu contador não consegue esconder da fiscalização o desfalque no orçamento dos incentivos estatais para a peça.

A solução implica dar mais alguns passos na direção do vexame. Endividado, Cardoso arranca um papel na novela bíblica do canal evangélico (obviamente, a TV Record). Será Lot, o sobrinho do patriarca Abraão que escapa da destruição de Sodoma.

Como a conta ainda não fecha, seus agentes descolam para ele uma campanha publicitária de uma marca de papel higiênico para aproveitar a visibilidade na novela.

A imagem do velho Mario Cardoso em cena de latrina será exposta ostensivamente em diversas mídias, até nos ônibus urbanos do Rio.

Fernanda Torres já castigara os personagens anciãos de "Fim", seu primeiro romance, com epílogos de vida entre humilhantes e prosaicos.

Agora, no novo livro, chicoteia um ator uma geração mais nova. Algum sadismo estilístico? Contas a acertar com os homens hedonistas e individualistas crescidos ou transformados na desvairada zona sul carioca?

A autora não compra totalmente a hipótese da reportagem. Rejeita cultivar alvos privilegiados: "Eu castigaria qualquer um". Talvez seja a visão antipanglossiana. "As coisas me vêm com ironia; a vida é trágica", afirma.

Por outro lado, parece enxergar o Rio exuberante e transgressor da década de 1950 em diante com o olhar da família suburbana que vem participar da festa, mas não se sente ambientada.

O pai da autora, Fernando Torres (morto em 2008), morou na Tijuca, na zona norte separada dos bairros dos bacanas por gigantescos maciços rochosos. O protagonista Mario Cardoso vem da Tijuca, onde vivem seus familiares não mais que remediados.

"A Tijuca é a classe média brasileira. É o Nelson Rodrigues", diz Fernanda, citando o escritor e dramaturgo carioca (1912-1980) também especialista em punir e aviltar personagens, muitas delas suburbanas como Mario.

MAIS DESVENTURAS

As múltiplas desgraças que despencam sobre a cabeça do ator evocam no protagonista recordações do seu passado.

Estudante universitário, abraça o teatro engajado. Em seguida adere ao chamado desbunde —onda de rebeldia e liberação dos costumes inspirada no movimento hippie. Atua no coro da adaptação de "Hair", com Sonia Braga e Armando Bógus, no Rio do alvorecer da década de 1970.

Um célebre e cabeçudo diretor argentino, de passagem pelo Brasil, coopta Mario para encenações desafiadoras, a começar do médico Astrov em "Tio Vania", de Tchékhov.

Depois de destacada atuação como Vado, o cafetão de Plínio Marcos (1935-1999) em "Navalha na Carne", mergulha no cinema autoral e daí para o estrelato nas novelas globais.

Fernanda, atriz global e colunista da Folha, afirma que quis retratar "como era o teatro e ser ator" na época em que ela era criança, quando o desbunde e as primeiras percepções do que era atuar a impressionaram muito.

A Glória e Seu Cortejo de Horrores
Fernanda Torres
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Mario Cardoso é da linhagem do "Zanoni [Ferrite] que eu vi, do [José] Wilker que eu vi, essa geração de atores com grande 'sex appeal'", diz.

O plano mais ambicioso, embora mais difuso, do romance é o despedaçamento da experiência compartilhada da cultura nacional.

O mundo que se desfaz ao longo da trajetória de Mario Cardoso não parece deixar um sucessor, apenas fragmentos. "A transformação tecnológica fez ruir a hierarquia da indústria [cultural]", diz Fernanda. Seu protagonista sofre tudo isso na pele.

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A GLÓRIA E SEU CORTEJO DE HORRORES
AUTORA Fernanda Torres
EDITORA Companhia Das Letras
QUANTO R$ 44,90 (216 págs.); R$ 29,90 (e-book)


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