Folha de S. Paulo


Amigos lembram seu último encontro com Torquato Neto, morto há 45 anos

Reprodução
Poeta e jornalista Torquato Neto faz o papel de vampiro no filme
Torquato Neto no filme "Nosferato no Brasil"

Atropelado na avenida Ipiranga, em São Paulo, Tom Zé não encontrou em Torquato bons ouvidos para queixas. "Seus sapatos voaram longe?", perguntou-lhe o poeta. "Estou com uma dor enorme nas costas e você me pergunta pelos sapatos?". Sim, insistiu: "Os sapatos de todos os atropelados voam longe. E os seus?". Tom Zé admitiu: "Não é que voaram longe?".

Em frente ao TBC (Teatro Brasileiro de Comédia), no bairro da Bela Vista, porque eram "nordestinos ou tropicalistas", Torquato afligiu-se com o carro veloz: "Vamos rápido! Aquele ali já nos viu". Na ressaca do tropicalismo, um ficou em São Paulo, o outro, no Rio. Nunca mais atravessaram juntos a rua.

No final de 1968, passada uma tentativa de suicídio, o poeta pediu à figurinista Regina Boni, numa clínica em São Paulo: "Fique comigo". Regina viveria encontros mais doces com Torquato e sua mulher, Ana –nenhum deles com jeito de despedida.

No elevador da avenida Rio Branco, 14, onde trabalhava numa empresa de navegação, o poeta e produtor Hermínio Bello de Carvalho dividia sempre segundos com Torquato, que seguia para a gravadora Mocambo. Chocado com a morte do vizinho de repartição, Hermínio descreveu num poema "sua boca larga, cheia de dentes e poesia".

No Quartier Latin, em Paris, o letrista Ronaldo Bastos morou na mesma pensão de Torquato. Em 1969, flanavam, bebiam e pensavam no Brasil. O teto do quarto de Ronaldo era forrado de poemas. Torquato dizia que o poeta beat Allen Ginsberg havia morado ali. Nasceram versos: "Saiba, Ronaldo, acontece/ uma vez em qualquer vida:/ as teias que a gente tece/ abrem sempre uma ferida". No Brasil, se viam menos. O último encontro foi num show de Milton Nascimento.

"NAVILOUCA"

Torquato levou ao porto o artista plástico Luciano Figueiredo, que embarcaria para Londres, onde era esperado por Óscar Ramos. A amizade nasceu após a tropicália, em 1970. Nunca tiveram um papo íntimo. Luciano e Óscar criaram o projeto gráfico da "Navilouca", revista vanguardista liderada por Torquato e Waly Salomão, inimigos das caretices panfletárias. Luciano despediu-se de um homem "amável e essencialmente calado", que morreria 20 dias mais tarde.

"A transa da 'Flor do Mal' é simples como uma fórmula mágica." Em 1971, na coluna "Geléia Geral" ("Última Hora"), Torquato festejava o jornalista Luiz Carlos Maciel por levar às bancas o nanico "Flor do Mal" e a versão brasileira da revista "Rolling Stone". Ana Duarte trabalhava com Maciel no "Pasquim", que editava o tabloide "Flor do Mal". Maciel viu o tropicalista pela última vez na porta do jornal, à espera de Ana, com quem foi de mãos dadas para casa.

Um desencontro na contracultura. Exilado entre 1965 e 1972, o compositor Jorge Mautner não ficou amigo de Torquato. De volta ao Brasil, apenas o cumprimentou duas vezes em festas cariocas. Entristeceu-se com a morte prematura do "homem que levava tudo aos extremos".

O cineasta Ivan Cardoso, autor das célebres imagens de Torquato em "Nosferato no Brasil" (1970), diz que não conheceu o "dark side" do poeta. Ele se considera lançado pelo amigo como diretor e fotógrafo. "Nunca o dirigi. Ele tinha dentro dele o personagem do vampiro. Torquato é o Nosferato que está na tela." Cardoso levou o tropicalista ao Carnaval da Bahia, em 1972. Minutos após a exibição de um filme de Rogério Sganzerla, no MAM (RJ), convidou Torquato para ir ao casamento de Graça, irmã de Nelson Motta. Torquato preferia festejar o próprio aniversário num bar na Usina. Era a noite de 9 de novembro de 1972.

CAJUÍNA

No Carnaval de Salvador, reencontrou Caetano Veloso e Gilberto Gil, recém-chegados do exílio em Londres. Ele e Ana apareceram na casa de Caetano e Dedé. Torquato percorreu as ruas do centro para conferir a Caetanave, trio em homenagem ao compositor baiano. Celebraria a folia em sua coluna na "Última Hora": "Quem não foi perdeu. E não está com nada, por enquanto". Gil viajava ao Rio com mais frequência e ainda reviu o parceiro. Caetano, que se despediu de Torquato no Carnaval, comporia "Cajuína" em 1979, impactado pela visita a Heli, o pai do amigo, em Teresina: "Existirmos: a que será que se destina?".

Deste Carnaval restou uma cena definitiva para a atriz Helena Ignez. "Louca de paixão" pelo cineasta Rogério Sganzerla, apoiado pelo poeta na artilharia contra o cinema novo, ela não via nada à sua frente. Guardou a lembrança de "encontros demolidores". O mais claro: Torquato atrás de um trio elétrico, espremido pela multidão da Praça Castro Alves.

Ao poeta e tradutor Duda Machado, seu amigo desde 1961, na Bahia, revelou um projeto novo, pouco antes de morrer: um livro de poemas.

Nas Dunas do Barato, em Ipanema, o poeta Jorge Salomão dividia a areia com seu irmão, Waly, e com Torquato. Antes da estreia do show "Luiz Gonzaga Volta para Curtir", dirigido por Jorge, Torquato dava pulos de alegria com o Rei do Baião. No Café Lamas, perto do fim, parecia ter uma chama intensa e enigmática. Mas divertia-se. Na manhã de 10 de novembro de 1972, um telefonema acordou Jorge em seu quarto no Vidigal. Aos 28 anos, o chapa Torquato se suicidara na madrugada, abrindo o gás do aquecedor do chuveiro.


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