Folha de S. Paulo


Crítica

Remontagem de 'O Rei da Vela' realça metamorfose do Oficina

O REI DA VELA (muito bom)
QUANDO sáb., às 19h, dom., às 18h; até 19/11
ONDE Sesc Pinheiros; r. Paes Leme, 195, tel. 11 3095-9400
QUANTO R$ 15 a R$ 50; 16 anos

*

Se comparada com a trajetória do Oficina nos últimos 20 anos, a remontagem de "O Rei da Vela" surpreende. A encenação da peça de Oswald de Andrade meio século após a montagem decisiva de 1967 torna presente a memória de quando o Teatro Oficina ainda não era o Teat(r)o Oficina.

Logo que Renato Borghi entra em cena, vemos um referencial de interpretação ligado tanto ao gestual da comédia popular quanto à materialidade stanislavskiana.

O Abelardo de Borghi vai além da imagem prefixada do agiota burguês. O gesto social —a ênfase cafajeste com que segura o próprio sexo, por exemplo– se conecta à construção minuciosa das intenções da personagem.

São expedientes de interpretação modernos que foram decisivos nos primeiros anos do Oficina, mas logo deixados de lado. Porém, em 1967 e hoje, é o rigor nesta escolha de atuação que mantém viva a estrutura da peça.

Afinal, o texto é rico em imagens corrosivas sobre o país e suas elites, mas pouco teatral. Nos três atos, a peça fica mais estática e a palavra se sobrepõe à dinâmica. A interpretação materialista de Borghi mantém vivo o espetáculo mesmo quando tende à paralisia e ao falatório.

A encenação de Zé Celso busca desvelar a estrutura produtiva do espaço. Ele coloca contrarregras atravessando a cena e até uma secretária-ponto no palco, soprando o texto. O trabalho processual de criação fica aparente.

Evoca-se, assim, o palco feito por Flávio Império em 1967 para o Oficina. Inspirado pelo pensamento de Bertolt Brecht, ele construiu um teatro desencantado, em concreto, com palco giratório e maquinaria à mostra para fomentar a reflexão do público.

O interesse pelo Brecht desmistificador e anti-idealista rondava a montagem original. Daí vem o esforço analítico e dialético na decifração (ou espinafração) de um país moderno e arcaico. Como dizem os Abelardos: "Um caso de burguesia avançada [...] Num país medieval".

Com a saída dos velhos integrantes (como Borghi e Fernando Peixoto) e a centralização em torno de Zé Celso na década de 1970, as posições materialistas de Brecht foram duramente criticadas.

As intenções analíticas foram afinal suplantadas pela defesa do encantamento dionisíaco em uma cena cada vez mais autorreferente.

Boa parte do que dava força à peça foi descartado na trajetória subsequente. E, com o tempo, "O Rei da Vela" passou a ser lembrada como prenúncio do irreverente espírito antropofágico do Oficina.

Mas a remontagem, que tenta reconstituir em pormenores o original, revela vestígios de tradição moderna que foi preterida no desenvolvimento do grupo. Talvez a intenção do Sesc tenha sido a de festejar um marco fundador do que é o Oficina hoje, mas o resultado é uma imagem do que o teatro não foi.


Endereço da página:

Links no texto: