Folha de S. Paulo


Brasil foi primeiro a importar detetive Spirit, de Eisner, que faria cem anos

João Montanaro
Logo da 'Ilustrada' com o personagem Spirit, desenhado por João Montanaro à moda de Eisner
Logo da 'Ilustrada' com o personagem Spirit, desenhado por João Montanaro à moda de Eisner

O mercado dos quadrinhos tem uma dívida com Will Eisner (1917-2005). Foi esse artista americano, cujo centenário é celebrado neste ano, que popularizou o termo "novela gráfica" e convenceu leitores de que os gibis podiam ser coisa de gente adulta.

Mas Eisner, por sua vez, tem uma dívida com o Brasil. Foi nas bancas brasileiras que seu principal personagem, o detetive Spirit, teve seu primeiro sucesso internacional e continuou a circular mesmo quando já definhava nos EUA.

"O Brasil foi o pioneiro na importação do Spirit [em 1941, um ano após sua estreia nos EUA]", diz à Folha o britânico Paul Gravett, especialista em HQs e curador de "Mangasia", mostra sobre gibis asiáticos em cartaz em Roma.

O Spirit era publicado nacionalmente na revista carioca "Gibi" e apenas em 1967 chegou ao grande mercado europeu, a França -país que homenageou Eisner neste ano no festival de Angoulême, espécie de Cannes das HQs.

Denny Colt, vulgo Spirit, era um detetive algo soturno que, após ser dado como morto, decidiu combater o crime usando a proteção de uma máscara em torno dos olhos.

Otavio Dias de Oliveira - mar.1993/Folhapress
O artista gráfico Will Eisner, criador do detetive Spirit
O artista gráfico Will Eisner, criador do detetive Spirit

Seu figurino era inconfundível —terno azul-marinho, gravata vermelha e luvas—, assim como eram típicos os cenários: becos noturnos e os topos dos arranha-céus.

O charmoso personagem se enraizou de tal maneira no Brasil que surpreendeu o próprio criador em sua visita ao Rio em 1991, na Bienal Internacional dos Quadrinhos.

Gravett esteve no evento e se recorda de discutir a questão com Eisner "em uma cobertura, à noite, uma coisa bem Spirit". "Esperávamos encontrar uma comunidade de fãs limitada, de uma certa idade, mas havia seguidores de vários perfis, de avós a netos."

GUERRA

Spirit estreou nos EUA na Segunda Guerra (1939-1945), quando conflitos barravam a exportação à Europa. Editoras se voltaram para a América Latina. O último capítulo foi publicado nos EUA em 1952 e, segundo Gravett, Spirit foi esquecido pelos americanos.

Mas no Brasil a obra foi reciclada em diversos formatos por décadas. As capas eram reinventadas por artistas nacionais, como Walmir Amaral, em publicações hoje clássicas.

O centenário de Eisner foi comemorado nos Estados Unidos com uma exposição itinerante. Por ora não há previsão de que ela chegue ao Brasil.

Para Gravett, as celebrações servem de estímulo às novas gerações de quadrinistas. Artistas podem se lembrar de que mesmo o pai da novela gráfica não encontrava editoras interessadas em seu trabalho -Eisner financiou as suas primeiras tiragens.

"Isso diz muito sobre seu comprometimento, sua crença de que aquilo valia a pena."

Outro incentivo, segundo Gravett: Eisner insistia que se levasse quadrinhos a sério —só neste ano o brasileiro Jabuti passou a premiar HQs.

Não por acaso, o principal troféu de quadrinhos nos EUA se chama Eisner Awards. No ano passado, os brasileiros Fábio Moon e Gabriel Bá venceram na categoria "adaptação de outro meio" ao transformar em gibi o livro "Dois Irmãos", de Milton Hatoum.

A importância de Eisner não está relacionada apenas ao Spirit. Uma de suas principais obras é "Um Contrato com Deus" (1978), sobre a comunidade judaica de Nova York, cidade em que nasceu.

Ele também escreveu livros técnicos sobre HQs, em uma época em que o gênero ainda não tinha tamanho status. Seu "Quadrinhos e Arte Sequencial", de 1985, é um clássico.

Apesar da variedade de personagens e temas, Eisner mantinha algo constante: a ênfase no design de suas páginas, explorando soluções criativas, por vezes ignorando os limites dos quadros.

Essa característica era vital em Spirit, em que até o título virava elemento gráfico.

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Em uma das histórias, a palavra "Spirit" foi desenhada como se fossem papéis esvoaçando sobre uma cidade. Noutra, o texto de introdução estava escrito dentro da letra "S". Foi essa característica que inspirou esta página da "Ilustrada", desenhada pelo brasileiro João Montanaro.

"Seu design era extraordinário", diz Gravett. "Ele se inspirava no cinema, e desenhava como se fossem storyboards. Dava ênfase ao 'gráfica' de 'novela gráfica'."


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