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Queria falar da morte com um sorriso, diz diretor de 'Gabriel e a Montanha'

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O ator João Pedro Zappa interpreta Gabriel Buchmann em 'Gabriel e a Montanha
O ator João Pedro Zappa interpreta Gabriel Buchmann em 'Gabriel e a Montanha'

"Mesmo se nosso destino já está escrito, tudo que temos no presente são nossas escolhas", escreveu o cineasta Fellipe Barbosa no e-mail a um jornalista. "Gabriel e a Montanha", seu segundo filme, trata de uma grande escolha. Gabriel opta por ir à África não como turista, mas como viajante.

A trajetória que resulta em sua morte (isso sabemos no início do filme, que estreia nesta quinta, 2, nos cinemas) e tem muito de uma busca do outro. Gabriel foi seu amigo de colégio e agora é seu personagem.

Não é de estranhar a intimidade de Barbosa, carioca nascido em 1980, com o tema. Ele viveu nove anos nos EUA, como estudante, viajou à África em 2007. E seu filme anterior, "Casa Grande", trata justamente de um jovem de classe alta que busca esse outro que se encontra nas favelas do Rio.

Desta vez, Fellipe volta ao Brasil com uma passagem pelo Festival de Cannes e consagrado pela crítica internacional, sobretudo francesa.

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Folha - Como viver nove anos fora do Brasil influenciou sua visão sobre o nosso país?

Fellipe Barbosa - Muito marcante. Por um lado, há a oportunidade de se reinventar no exílio. Por outro, a necessidade de se afirmar como brasileiro. Acho curioso que Gilberto Freyre começou a esboçar "Casa Grande e Senzala" na Universidade Columbia, em Nova York, no Harlem, onde morei por bons anos e descobri que não era branco: lá era latino e fazia parte da "minoria".

Ver o Brasil de longe durante a era Lula: cotas, PEC das domésticas, direitos adquiridos, o crescimento da classe média, todo o pano de fundo do "Casa Grande". Vivia a era Bush, do 11 de Setembro à eleição de Obama. Percebi como éramos diferentes do norte, nem melhores nem piores. Menos conscientes e talvez mais felizes. Hoje, no pós-Dilma e na era Trump, estamos mais próximos, pois virou tudo lama.

Gabriel poderia ter ficado no país, cuidar do futuro pessoal, de ganhar dinheiro. Mas tinha absoluta necessidade de ir ao outro. Como você avalia isso?

Ele é bem diferente do brasileiro da classe média alta, e ir à África foi uma oportunidade de escapar desse lugar. Tratei Gabriel como um viajante extraordinário, pois poucos teriam coragem de viajar como ele, mas também um ser humano cheio de contradições que o tornam ordinário.

Existe essa contradição e muitas outras: egoísmo e generosidade, humildade e arrogância etc. Não saberia diferenciar minha visão do Gabriel como amigo ou cineasta. Fui melhor amigo dele enquanto cineasta. Tínhamos perdido contato, e só descobri seu último e-mail para mim após sua morte. Refazer seus passos foi um gesto de cinema e de amizade. Confrontar suas contradições, seus erros e ainda conseguir amá-lo é mais justo do que inventar mais um herói.

Sem dúvida, há em Gabriel um misto de pureza e sentimento de onipotência.

Essa pureza habita todos nós. Dalai Lama diz que a compaixão é nosso estado mais puro, e não a competição. Gabriel leu Dalai Lama durante a viagem, e eu também. Talvez essa pureza esteja mais presente nas pessoas humildes, só porque quem tem menos compartilha mais. Então o desapego contribui para esse estado de pureza que vemos no Gabriel e na África.

Por que você acha que Gabriel decide peregrinar na África quando existe um outro aqui ao lado, ali mesmo na favela?

Para ser justo, Gabriel rodou o Brasil inteiro antes de partir ao redor do mundo. Fez uma viagem profunda pelo sertão, levantando dados e morando com os mais pobres.

Mas posso também responder a essa pergunta por mim: a gente vai para a África em vez de ir à favela porque é muito mais fácil ir ao encontro do outro do outro lado do mundo do que na esquina. Encontro na favela é um movimento delicado, com tintas de exotismo. Não queremos olhar nossos vizinhos como antropólogos num jipe. Queremos nos sentir seus vizinhos. E, como mal conhecemos nossos vizinhos de porta, mantemos a mesma distância com nossos vizinhos de morro.

Em "Gabriel", o africano é um homem integral, não um figurante, como em "Hatari!", por exemplo. Como você viu a África e o homem africano hoje em sua comparação com esse homem colonial que de certa forma vive em nós, como uma espécie de "efeito cinema"?

Fui muito influenciado pela minha primeira viagem a Uganda, em 2007. Como o Gabriel, eu não queria voltar. A experiência me deu legitimidade para mergulhar nesse projeto. O primeiro contato com a África profunda é muito forte para todos, talvez ainda mais para nós, brasileiros, pela distância geográfica e proximidade íntima. Um sentimento de origem, de início –e por isso, talvez, de fim. Lá o homem não marcou e modificou tanto as paisagens, pois a vida é muito curta para isso. A relação com a morte é muito distinta da nossa: fala-se dela com um sorriso no rosto, como se a vida fosse um jogo de xadrez.

Existe interesse constante no homem branco que chega com dinheiro, mas existe também uma vontade genuína de receber e de compartilhar um sorriso. Queria que esse espírito africano –do "homem integral", como você diz– habitasse o filme. E, através dos olhos dos africanos, olhar para a morte com um sorriso.

Um crítico do "Cahiers du Cinéma" afirmou que Gabriel parecia, de certo modo, procurar a morte. Que te parece isso, em termos de alegoria de um destino nacional?

Ele traçou um paralelo entre Gabriel e um país jovem e cheio de sonhos, que subiu, subiu e não soube descer. Achei muito interessante, mas não poderia ser algo previsto ou calculado. Pensei muito em destino ao fazer o filme. Não no destino de um país, e sim no de um homem, que é necessariamente a morte.

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GABRIEL E A MONTANHA (ótimo)
DIREÇÃO Fellipe Barbosa
ELENCO João Pedro Zappa, Caroline Abras
PRODUÇÃO Brasil, 2017; 14 anos
QUANDO estreia nesta quinta (2)

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Veja o trailer de "Gabriel e a Montanha"

Veja o trailer de "Gabriel e a Montanha"


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