Folha de S. Paulo


'Eu tinha meu olhar condicionado', diz diretora de peça com travesti

Lilian Fernandes/Divulgação
A atriz Renata Carvalho e a diretora Natalia Mallo, da peça 'O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu
A atriz Renata Carvalho e a diretora Natalia Mallo, de 'O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu'

Não foram só duas censuras judiciais —uma em Jundiaí, em setembro, e outra em Salvador, na última sexta (27)— que a peça "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu" precisou enfrentar.

Natalia Mallo, diretora do espetáculo de texto assinado pela autora transexual britânica Jo Clifford, também relata à Folha manifestações de ódio e a dificuldade de encontrar palcos e patrocínio.

Criada a partir de elementos litúrgicos cristãos, a peça apresenta Jesus na pele de uma transexual. Esse foi o motivo de protestos e das proibições. Duas ações judiciais falavam em desrespeito religioso. Em Jundiaí, a peça seria exibida pelo Sesc, mas foi cancelada —a decisão acabou revertida 20 dias depois.

No Espaço Cultural da Barroquinha, administrado por uma fundação municipal de Salvador, o veto resultou de ação movida pelo advogado Alexandre Santa Rosa de Oliveira, com aval do juiz Paulo Albiani Alves.

"Não se pode tentar eliminar os símbolos/crenças religiosos mais tradicionais do povo, com narrativas debochadas e fantasiosas, como que lhe arrancando as raízes", disse o magistrado.

A proibição de "O Evangelho Segundo Jesus, Rainha do Céu" ocorre em meio a uma onda de reação a projetos culturais, basicamente dividida em três tópicos.

Protestos e mobilizações pacíficos de grupos organizados (parte pede classificações indicativas rígidas, como a proibição de menores de idade em mostra do Masp), ataques virtuais e violência ou censura determinada pelo Judiciário ou Executivo.

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Folha - Há um trecho na peça que diz: "Abençoado seja se as pessoas abusam de você ou a perseguem, isso significa que você está trazendo a mudança". Que mudança buscavam com essa obra?
Natalia Mallo - Não fiz nada com o objetivo de mudar a sociedade ou de mudar uma mentalidade. O texto me tocou como obra artística. E, claro, quando fui montá-lo, procurei um entendimento de qual realidade a peça falava.

O que é uma vivência trans ou uma vivência travesti. Havia não só uma mentalidade, mas olhares condicionados sobre esse corpo. Estigma. Trazer esse corpo para o foco era um ato político. Eu tinha meu olhar bastante condicionado. E à medida que a gente transforma, esse corpo já não é tão estranho. Quem sabe esse seja o caminho para reverter o quadro de transfobia.

A peça foi censurada duas vezes pela Justiça. Que dificuldades o tema e a natureza da obra trouxeram?
Apliquei para alguns editais, mas não consegui nenhum. Percebi que não seria fácil emplacar esse projeto porque todo mundo tinha um pé atrás. Por outro lado, tive um aval institucional, do British Council, que apoiou o projeto. E apareceu uma produtora, que quis bancar.

A última liminar judicial vale somente para Salvador?
Não, ela só vale para o Espaço Cultura da Barroquinha, que é onde a gente ia se apresentar. A peça não está banida. É uma tentativa de nos fragilizar com aqueles que nos contratam.

É central na peça a questão de Jesus Cristo ser trans ou ter traços femininos?
A peça não diz que Jesus foi mulher, mas brinca como se fosse. E faz uma brincadeira com gênero. Tenho dificuldade de escrever "todos nós". Não consigo, tenho que dar um jeito de driblar, sem usar o "x" [onde há a vogal que aponta o gênero]. Mas acho que o que a peça faz é apontar a opressão do gênero feminino, seja trans ou cisgênero [termo usado para designar pessoas que tem o mesmo gênero desde o nascimento].

Que grau de recusa, ou mesmo de ódio, a sra. enfrentou?
A gente esperava polêmica e estava receosa. Na estreia teve notas de repúdio. Pouca coisa presencial. Esses opositores não aparecem fisicamente. Há muita coisa de Facebook, mensagens de ódio. A gente esperava isso. Talvez o que ninguém pudesse prever era essa histeria. Como essa produção está sendo usada como palanque, para emplacar narrativas, mirando as eleições.

Teve desde "isso não se faz" até "você tem que morrer". Em um vídeo, um homem xinga a gente e chora. O vídeo se chama "O Bom Cristão". Fala "vocês têm que queimar no inferno" e chora.

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