Folha de S. Paulo


Neto de Chico e filho de Brown é 'o melhor músico da família', diz avô

Chico Brown: neto de Buarque, filho de Carlinhos

Era um jantar da família Buarque de Hollanda, e uma das crianças à mesa –Lia, filha de Luísa e neta de Chico– começou a cantar "Minha Canção", que seu avô fez para a trilha de "Os Saltimbancos". É aquela em que a sílaba inicial de cada verso indica a nota musical: "Dorme a cidade / Resta um coração / Misterioso / Faz uma ilusão" etc.

Um dos ouvintes, seu primo Francisco, notou um problema na interpretação. "Eu fiquei incomodado de a música não começar em dó, falei que estava errado. Meu avô disse que não era todo mundo que percebia isso", conta o rapaz, hoje com 21 anos. Assim, a família começou a se dar conta de que o primogênito de Helena Buarque e de Carlinhos Brown tinha um raro ouvido absoluto, capaz de identificar qualquer nota musical.

O avô testou o menino ao piano e confirmou o talento inato. "Sempre achei que isso fosse natural das pessoas. Meus amigos e família começaram a 'hypar' a parada, a enxergar um potencial ali", diz Francisco, mais conhecido como Chico Brown (Chiquinho, para os íntimos).

Esse potencial vem se revelando em composições como "Massarandupió", valsa composta por ele, com letra de seu avô, que a gravou em seu disco mais recente, "Caravanas". Também é visível nas canções autorais que ele registrou em vídeo e colocou num canal no YouTube com seu nome.

Chico tem ainda uma banda com amigos dos tempos de escola –Ivo Costa (guitarra), Luigi Tedesco (baixo), Vitor Nogueira (bateria), Joca (percussão) e Tomás (percussão)– com a qual vem se apresentando no circuito alternativo do Rio. Num ensaio a que a Folha assistiu, os rapazes (todos com 20 e poucos anos) tocaram composições de Chico Brown como o blues "Morrer de Música" e o reggae "Rasta with an Apple", além de versões de Moraes Moreira ("Chinelo do Meu Avô"), de Carlinhos Brown ("Carlito Marrón") e um pot-pourri de Michael Jackson.

"Tocamos música popular, mas tentando criar interseções, misturar frevo com guitarra baiana, samba, valsa, jazz, black music em geral, deixando com uma cara de música popular brasileira, mas vendo até onde a gente pode expandir", diz ele, que, além de guitarrista e compositor, é também o vocalista. Cantar, no entanto, não foi algo automático. Aconteceu por acaso, numa fase anterior, quando fazia covers de bandas de metal como Iron Maiden (há um vídeo on-line dele tocando "The Trooper", um dos clássicos dos ingleses), Metallica, Halloween e AC/DC.

"Eu só tocava guitarra, mas teve um show em que o vocalista furou e me botaram pra cantar, pra quebrar um galho", diz ele. "Demorou muito para eu ter segurança para poder assumir. Até hoje me sinto mais seguro como instrumentista do que como cantor. Mas fui compondo, tomando consciência de que alguma hora eu teria de interpretar aquilo nem que fosse para mostrar para outras pessoas. Você vai tendo que segurar o repertório."

CRIAÇÃO MUSICAL

Veja o canal de Chico Brown no Youtube

Veja o canal de Chico Brown no Youtube

Nascido no Rio e criado em Salvador, Chico Brown cresceu cercado de música. "Quando eu era bebê, rolou aquele primeiro contato com o batuque. Pegava colher de pau da cozinha para sair batendo em panela, em banco de madeira, pegava as percussões de meu pai em casa."

Carlinhos Brown diz que o levava desde os primeiros anos para o palco da Timbalada. Lembra-se de uma ocasião especial, que narra de forma quase mística: num show em que estavam presentes Milton Nascimento, Ivete Sangalo e outros astros da música, o bebê "pegou as baquetas e começou a acompanhar a Timbalada. Eu fiquei naquele orgulho de pai, 'meu filho vai ser percussionista'."

Ainda cedo, no entanto, o menino deu indicações de que seria mais, um multi-instrumentista. "Quando eu viajava de Salvador para o Rio, tinha um piano na casa de minha avó [a atriz Marieta Severo] que o próprio Tom [Jobim] escolheu, segundo meu avô me disse. Sentava para aprender as trilhas sonoras de desenhos animados. Aprendia sozinho, tirava de ouvido, achava a coisa mais natural do mundo. A primeira música que eu tirei inteira no piano foi a 'Marcha Imperial' do John Williams, do Darth Vader."

Além do apreço por trilhas, a paixão pela guitarra também veio precocemente, segundo seu pai. "Aos 5 anos, ele ouviu Armandinho tocar guitarra e se apaixonou. Entreguei um violão italiano para ele e ele quebrou todo, porque via cena de rock e imitava. Eu disse, 'ih, esse menino é roqueiro'. Aí se apaixonou pelo Metallica e foi enveredando até Frank Zappa, Focus, Hendrix", conta Brown.

Quando a família se mudou para o Rio, em 2008, Chico começou a estudar o instrumento. "Com 12 anos, comecei a estudar na Escola de Músicos e a levar mais a sério o hábito de praticar um instrumento. Peguei uma guitarra, comecei a fazer uns riffs, uns solos, praticava algumas horas depois que voltava da escola. Da guitarra, fui para outros instrumentos, comecei a tocar piano de uma forma mais dedicada, a usá-lo para compor."

Tendo convivido desde o berço com a música da família, foi buscar sonoridades diferentes quando começou a se interessar por composição. "Cresci ouvindo as músicas deles [Chico e Brown], eram lugar-comum pra mim. Não era como quando eu ouvia um Dream Theater, um Yes, tá ligado? O lance do rock, da guitarra, foi uma novidade."

Mais recentemente, quando deixou de ser apenas um instrumentista e começou a criar canções, passou a consultar os trabalhos do pai e do avô como referência.

"Ritmicamente, o suingue, a levada do meu pai sempre foi uma referência muito forte. E, liricamente, a poesia do meu avô. Mas não me imagino escrevendo daquela forma, minha geração não teve um contato com a literatura tão forte quanto a dele para eu ter a expectativa de buscar uma letra tão forte. Na escola, eu estudava as letras do meu avô, saca? Tipo 'Cálice', contra a repressão da ditadura. É um pouco intimidador nesse aspecto, porque algumas pessoas esperam que eu tenha o ritmo de meu pai, que escreva tanto quanto meu avô."

Sua forma de lidar com tais expectativas, diz, "é não me levar muito a sério, na medida do possível", mas, ao mesmo tempo, "me preparar pra fazer jus à responsabilidade".

Além de compor e tocar com os amigos, está se formando em produção fonográfica na universidade Estácio de Sá, no Rio.

Apesar de já ter arquivos que somam quase cem horas de gravação (segundo ele, "material para destilar", ideias rítmicas para músicas), ele diz ainda não ter muito a mostrar. Ocasionalmente, apresenta ideias para o pai ou para o avô –já tem parcerias com ambos, ainda que a única finalizada e registrada seja "Massarandupió".

"Comecei a mostrar para meu avô algumas melodias avulsas, sem compromisso. Já tínhamos chegado a tentar umas parcerias, ele botou letra em uma que a gente não terminou. Ficava nessa brincadeira de almoço de família, até que ele foi me pedindo cada vez mais", diz o neto.

"'Massarandupió' veio numa leva de cinco músicas que eu mandei pra ele, fiz em Salvador, quase não mandei, achava a mais infantil de todas. Foi a que ele mais gostou. No meu aniversário de 20 anos ele me mandou um arquivo com a letra completa e disse que tinha interesse em gravar. Foi como um presente, fiquei muito feliz."

RACISMO

Primeiro filho de Carlinhos Brown, Francisco ganhou seu nome muito antes de nascer –antes mesmo de seu pai se casar com Helena Buarque de Hollanda, de quem se separou em 2011 (além de Chico, eles tiveram Clara, Cecília e Leila; Brown também é pai de Miguel e Nina, de outros dois relacionamentos). O batismo com o nome do santo (e, por coincidência, do avô) foi uma promessa de seu pai, que foi salvo de um afogamento na infância por um Francisco, seu padrinho.

Mesmo com suas associações familiares cada vez mais públicas –ainda criança, foi fotografado assistindo a um jogo do Flamengo no Maracanã ao lado do avô (que torce para o Fluminense)–, Chico Brown diz que ainda há quem se surpreenda com sua ascendência buarquiana. "A galera acha que eu sou a cara do meu pai, mas tem quem não acredite que sou neto do meu avô. Já me perguntaram por que eu não tinha olhos azuis como ele."

Ciente de sua classe social privilegiada, diz saber que não sofre os mesmos riscos que um jovem negro de periferia. Ainda assim é vítima do que chama de "o racismo nosso de cada dia".

"Você começa a ter contato com isso desde cedo. Como qualquer jovem negro, você recebe conselho pra sair sempre com documento, não andar por tal lugar a tal hora, não usar determinado 'case' de guitarra porque pode parecer uma arma. São coisas que você acha exagerado a princípio", diz. "As pessoas que evitam sentar do seu lado no ônibus, ou apertam a bolsa, atravessam a rua quando passam por você. Já tomei tapa de segurança, de policial. Nessas horas, não existem meu pai nem meu avô para influenciar em nada."

Do pai, herdou não apenas as feições, mas a dispersão, segundo Carlinhos: "Às vezes somos dispeeeersos. Isso vem mais de uma ideia mediúnica do que de falta de atenção, eu tenho uma capacidade de voar muito rápido, ele tem isso também. É uma versão melhorada de mim, porque também tem muito da mãe."

Apesar de estar ainda tateando seu futuro profissional como músico, Chico Brown sabe que suas conexões familiares trazem a pressão da expectativa do público, mas ajudam a iniciar a carreira.

"É positivo na medida em que as pessoas esperam algo maneiro de você e acompanham. Você tem uma 'fan base' que não é sua e que está de olho no seu trabalho. Isso é muito bom porque você não começa do zero. Ao mesmo tempo, você tem de aprender a tocar e a compor do zero. Tem de ter algo seu a dizer, entende? Aí é que está a dificuldade."

A julgar pelo veredito do avô, as dificuldades serão momentâneas. "Multi-instrumentista, autodidata e com ouvido absoluto, Chiquinho é o melhor músico da família", disse Chico Buarque à Folha, por escrito.

Seu pai também confia no talento do rebento: "Ele é autêntico, o que nos dá uma segurança gigante. É muito estudioso, lê bastante, sabe de música de várias épocas, rock, choro, samba. Vai ser cobrado, e isso é legal, mas não podem esperar que vá cantar como Chico ou como eu. Estou torcendo pela carreira dele, pelo sonho dele".

Carreira ainda é apenas um vislumbre para Chico Brown, ao menos no discurso. "Música no Brasil é complicado. Hoje eu estou nessa com tudo, vendo como dá certo, tentando passar pelos perrengues, botar para fora essas canções em que eu vim trabalhando ao longo de muitos anos. Estou começando pelo lado da canção, que, aqui no Brasil, é o mais realista de se levar profissionalmente, ao menos no primeiro momento. A muito longo prazo, pretendo trabalhar com tipos diferentes de música, que fujam do espectro comercial. Tenho muito interesse em música como arte."

Suas ambições e inclinações estão bem descritas em "Morrer de Música", uma das primeiras canções que compôs: "Eu sou criador de melodia / sonhador de harmonia / foi vida que quis pra mim (...)/ Eu sou do batuque, da folia / mas também da calmaria que é a música pra mim / Pois sonhei um dia ter certeza / que o pão da minha mesa / vai ser dela que vai vir".


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