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Mundo 'encaretou', diz Helena Ignez, que faz elogio a utopias em novo filme

Acervo UH/Folhapress
A atriz e diretora Helena Ignez em série de retratos feitos em 1964
A atriz e diretora Helena Ignez em série de retratos feitos em 1964

Todo dia Helena Ignez ouve blues e jazz por pouco mais de uma hora, em seu apartamento, no centro de São Paulo. Serve para embalar as suas práticas de tai chi chuan e ioga taoista. "Tenho essa relação com o som", explica. "Sou baiana, né?"

Não por acaso, é pela música que a atriz e diretora, 78, começa a criar seus filmes, como "A Moça do Calendário", um dos quatro em que ela figura na programação da Mostra de Cinema de São Paulo.

Baseado em roteiro deixado pelo cineasta Rogério Sganzerla (1946-2004), com quem ela foi casada por 34 anos, "A Moça do Calendário" é um libelo em favor das utopias (feminista, racial, social, sexual) de que Helena é símbolo desde os anos 1960.

A história segue Inácio (André Guerreiro Lopes), mecânico e dublê de dançarino que sonha com a garota que estampa o calendário da oficina onde trabalha (vivida por Djin Sganzerla) enquanto pena nas mãos do chefe.

O filme segue muito da cartilha sganzerliana: a narrativa em off; as referências a filmes como "Sem Essa, Aranha" e "Copacabana, Mon Amour"; atores falando diretamente com o espectador.

"É o filme de uma discípula livre. E feminista", diz ela, que atualizou o roteiro e incluiu referências ao MST e às reformas trabalhista e previdenciária do governo Temer.

Também dá tintas bem paulistanas (quase tudo foi filmado no centro de São Paulo) a uma história originalmente ambientada no subúrbio carioca. Tudo acompanhado da seleção musical feita pela diretora, que vai de Pixinguinha a MC Fininho.

Na mostra, Helena ainda dá as caras como atriz em "Antes do Fim", filme de Cristiano Burlan, e em "O Padre e a Moça" (1966), de Joaquim Pedro de Andrade, exibido em retrospectiva –esse último é revisitado no documentário "Todos os Paulos do Mundo", de Rodrigo de Oliveira e Gustavo Ribeiro, sobre a carreira de Paulo José.

Já no teatro, divide o palco com a filha Djin em "Tchékhov É um Cogumelo", encenado por Guerreiro Lopes. E, no ano que vem, será uma "ringue girl" na peça "Ringue", com direção de Burlan.

O teatro, sua formação (estudou arte dramática na UFBA, depois de desistir do curso de direito), também guiou seus filmes, como "Canção de Baal" (2007), a partir da peça de Brecht, e "Ralé" (2016). "O meu cinema é teatral, performático. Tem uma energia do impulso que é típico do teatro, da atuação."

A MULHER DE TODOS

Vinda de uma família da alta sociedade soteropolitana, Helena chamava a atenção pela beleza –chegou a ser candidata a miss Bahia.

Nelson Rodrigues atentava ao prenome duplo da atriz: "Não é por acaso, não é por capricho, que uma mulher se chama, ao mesmo tempo, Helena e Ignez. Temos Helena, que foi amada por um povo, e temos Inês, que foi amada por um homem", disse o dramaturgo, referindo-se a Helena de Troia e Inês de Castro, paixão de D. Pedro 1º.

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Mas foi no centro de um movimento vanguardista do cinema e do teatro que surgiu o nome de Helena. Estreou em 1959 com Glauber Rocha (1939-1981), seu primeiro marido, no curta "O Pátio".

Tornaria-se depois o rosto de produções do cinema marginal, como a prostituta Janete Jane, de "O Bandido da Luz Vermelha" (1968), e a aspirante a cantora Sonia Silk, de "Copacabana Mon Amour" (1970), ambos de Sganzerla, inaugurando uma forma extravagante e debochada de atuar.

O crítico Jean-Claude Bernardet aponta para sua vamp libertária de "A Mulher de Todos" (1969): a interpretação "audaciosa" da atriz se aproxima da performance e rompe com o realismo.

TAPA NA CARA

À reportagem, ela rememora a época do desbunde.

"Outro dia, pensei: que bom que vivi 1968. O pessoal era louquésimo. No meio de uma peça, de repente, todo mundo ficava nu. Era uma descaretação total, um tapa na cara extraordinário."

Hoje, diz, tudo "encaretou". "Está todo mundo muito acomodado, salvo ativistas, que são a minoria. E nós sempre somos a minoria."

Helena foi uma das vozes que, há mais de 50 anos, já clamavam por igualdade de gênero e pelo protagonismo feminino. "Ir atrás do desejo é a marca da liberdade. E isso me caracterizou."

Mas diz ter pagado "um preço caro". Quando era casada com Glauber, escandalizou a sociedade baiana ao descobrir-se que ela mantinha um namoro com outro homem. Separou-se do cineasta, com quem já tinha uma filha, Paloma, nos anos 1960, "numa época em que não tinha nem divórcio".

Divulgação
Cena do filme
Claudinei Brandão e André Guerreiro Lopes em cena de "A Moça do Calendário", de Helena Ignez

Liberdade, diz, encontrou ao lado de Sganzerla, com quem viveu até a morte do diretor. "Ele aceitou a minha ida para outras coisas."

As coisas foram sua incursão "muito radical" pelo hinduísmo, que a levou a EUA, Inglaterra e Índia, onde morou sem o marido. De volta ao Brasil, enquanto passava "três, quatro horas" fazendo tai chi na floresta da Tijuca, Sganzerla perambulava com o poeta Waly Salomão. "Ele se distraía filmando, vendo os pássaros."

O diretor deixou um acervo que frequentemente obriga Helena a viajar por festivais. Legou também roteiros nunca filmados que a atriz pretende desengavetar.

"Estou com excesso de trabalho", diz ela, que, além das criações próprias, será tema do documentário "A Mulher de Luz Própria", de sua filha Sinai Sganzerla.

Sobre a diversidade de suas obras, diz acreditar "na inteligência do público". "É outro aspecto sganzerliano. Vivo do cinema. Preciso desse público."


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