Folha de S. Paulo


'Todos querem acertar', diz diretora Daniela Thomas, alvo de críticas

Ricardo Borges/Folhapress
Rio de Janeiro, Rj, BRASIL. 24/10/2017; Retrato da diretora Daniela Thomas que estreia o filme
Daniela Thomas, diretora de "Vazante", no Instituto Moreira Salles do Rio

Em exibição na Mostra de SP, "Vazante" é a primeira incursão de Daniela Thomas na direção solo de um longa, após parcerias com Walter Salles e Felipe Hirsch.

O filme retrata a escravidão em Minas Gerais no século 19 sob o olhar de uma garota branca (Luana Nastas), dada em casamento a um homem mais velho, senhor de escravos.

O filme abriu a mostra Panorama no Festival de Berlim, em fevereiro, e gerou uma celeuma ao ser exibido no Festival de Brasília, em setembro.

Na ocasião, a obra foi criticada por espectadores negros que viram no longa um discurso mantenedor do "status quo" da opressão racial, particularmente pela forma como ele retrata a maioria dos escravos, sem nome ou sinais de subjetividade.

Em entrevista por e-mail, a diretora comenta o filme e as polêmicas que ele suscitou.



Folha - Em 'Vazante' você opta por um ritmo diferente do habitual. Por quê?
Daniela Thomas - Os primeiros dez minutos são determinantes para quem assiste. Na época em que se passa o filme, no início do século 19, ia-se do Rio de Janeiro ao interior de Minas Gerais a pé.

Homens viajavam presos por correntes, por meses. É uma experiência que nem conseguimos imaginar. Por isso, eu quis, de cara, expressar outra ideia de tempo. Foram várias estratégias para me aproximar da vida nesse lugar, nesse momento, mas o ritmo interno do filme foi uma das principais.

Ao abordar a escravidão, o cinema americano costuma retratar o que críticos chamam de "fetiche da tortura". Você opta por outra via. Por quê?
Acredito que exista um gênero sobre a escravidão no cinema americano. E que, nesses filmes, haja uma exploração das sevícias aos escravos e de cenas de sadismo praticada por senhores contra os negros. A escravidão parece ser uma questão de psicopatia individual. Eu queria sair dessa armadilha.

A escravidão, no meu entender, é um sadismo de Estado. A sociedade brasileira foi inteiramente construída sobre o trabalho escravo. E essa relação perversa baseada na exclusão, na violência -que é fundadora do país- foi o que eu quis retratar, não a doença individual.

Minha visão e a do Beto, [Amaral, corroteirista], depois de uma pesquisa bastante extensa da produção historiográfica contemporânea do Brasil, foi desenvolver a ideia -emprestada da filósofa Hannah Arendt- de que a principal característica de uma sociedade escravocrata é a "banalidade do mal".

A violência perpassa todas as relações, e a tortura é apenas uma das maneiras como ela se expressa. E precisávamos mostrar, no cinema, as dinâmicas sutis dessa violência cotidiana, insidiosa.

Divulgação
Luana Nastas e Adriano Carvalho em cena de 'Vazante
Luana Nastas e Adriano Carvalho em cena de 'Vazante'

O filme parece retomar a ideia de que o país se funda sobre o estupro. Foi a sua intenção?
É exatamente isso. Toda a dramaturgia foi fundada sobre a hipótese de que a sociedade brasileira é, em grande parte, fruto do estupro. O da negra, escravizada, que é estuprada sistematicamente pelo senhor branco, e o da menina pré-púbere, que é dada pelos pais em casamento a homens de muitas vezes sua idade. Um absurdo que era a norma, incontestável. Os filhos desses estupros somos nós, brasileiros.

O filme foi criticado em Brasília por sua abordagem da escravidão. Você disse que o considerava anacrônico e que talvez nem o lançasse. Depois, escreveu na "piauí' que havia dito aquilo ironicamente. Arrepende-se de ter capitulado?
Foi um grande susto. E é lógico que me arrependo, porque eu tenho um enorme orgulho do filme.

O cinema tem um tempo próprio. Meu pai me contou há muitos anos uma história da nossa família [sobre uma menina forçada a se casar ainda criança] e isso iniciou um movimento que culminou em "Vazante". Foram quase 20 anos, da ideia até a cópia final. Brinco que cinema é um paquiderme, comparado às novas mídias.

Um filme finalizado é um objeto incontornável, um ponto de vista que tem o direito de existir, de ser visto, discutido.

Todo mundo quer acertar. Eu desejei criar uma imagem verossímil e pungente da vida no interior de Minas no início do século 19. Acho que consegui. Mas esse é o meu ponto de vista. E é o que eu posso oferecer ao diálogo geral, como artista. Para quem estiver interessado em dialogar, claro. E que venham outros filmes e livros refletindo sobre o nosso passado tão terrivelmente injusto e de pontos de vista ainda inéditos.

No centro do debate está a questão do lugar de fala, a ideia de que quem tem que falar sobre a opressão é o oprimido. Como encara o tema?
Estamos em plena tormenta, necessária e transformadora. Mas a ideia de um lugar de fala, que exclui todos que não são ao mesmo tempo sujeito e objeto, é um procedimento que divide, que impede o diálogo, a elaboração.

Precisamos da multiplicidade de vozes, de lugares, de troca de experiências. Não temos escolha. Se não formos juntos, vamos todos nos afogar na sopa da direita fundamentalista, que, enquanto a gente se esmurra, cresce exponencialmente. E o fascismo, esse sim, vai nos jogar de volta para dentro da dinâmica colonialista, patriarcal, que tanto desejamos superar.

É comum apontarem que 'Vazante' dá contornos estéticos à tragédia da escravidão. Como reage a essa crítica?
A linguagem visual e sonora de "Vazante" reflete meu desejo de ter um rigor absoluto na recriação dessa época. E a filmagem seca, sem gruas, sem "travellings" [movimento em que a câmera se desloca pelo espaço da filmagem], sem música épica, emotiva, sem qualquer enfeite para acentuar a experiência de ver o filme, vai na contramão da "estetização".

Acredito na força da presença das pessoas que se engajaram no projeto. A busca dessas pessoas, entre descendentes dos escravizados da região ou refugiados africanos no Brasil, dessas paisagens, da veracidade de cada objeto recriado para o filme, a ausência de luz elétrica na fotografia e de trilha sonora no filme final foram um esforço concentrado para atingir não um ideal estético, mas um desejo de veracidade.

VAZANTE
DIREÇÃO Daniela Thomas
ELENCO Adriano Carvalho, Luana Nastas, Vinicius Dos Anjos, Jai Baptista
PRODUÇÃO Brasil, Portugal, 2017, 14 anos
MOSTRA qua. (25), às 21h30; sex. (27), às 17h30; dom. (29), às 15h15; todas as sessões ocorrem no Espaço Itaú Frei Caneca


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