Folha de S. Paulo


Candidato da Argentina ao Oscar, filme 'Zama' tem 'sangue brasileiro'

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Daniel Giménez Cacho em cena de 'Zama', de Lucrecia Martel
Daniel Giménez Cacho em cena de 'Zama', de Lucrecia Martel

A cineasta argentina Lucrecia Martel gosta de definir seu mais recente filme, "Zama", como a história de um homem aprisionado na ideia que tem de si mesmo.

Ao contrário do personagem, a diretora de 50 anos não se importa com a rigidez dos rótulos. Ela não se define como cinéfila, diz que dirige porque gosta de conversar e não cedeu às pressões daqueles que ansiavam por mais filmes seus -seu último longa havia sido "A Mulher sem Cabeça", de 2008.

"Zama", um retrato de época delirante sobre a empreitada colonial na América espanhola é uma das mais aguardas atrações da Mostra de São Paulo, com exibição nesta segunda-feira (23).

O insight que rompeu o hiato de nove anos veio da leitura da novela homônima do argentino Antonio di Benedetto (1922-1956), feita enquanto ela navegava pelo rio Paraná, "entre nuvens de mosquitos em noites impudicamente quentes", como escreve no jornal "El País".

"Ler esse livro mexeu comigo fisicamente", diz ela à Folha, durante o Festival de Toronto, onde o longa foi exibido, em setembro. "E a forma que achei para me livrar da loucura que me acometeu foi fazendo o filme."

Boa parte da "loucura" brota das páginas e está impressa no longa. Ambientado no século 18, a história de carga existencialista está centrada na figura de dom Diego de Zama (Daniel Giménez Cacho), burocrata da Coroa espanhola que sonha com uma transferência de posto que não chega nunca.

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Cena do filme 'Zama
Cena do filme 'Zama'

Enquanto aguarda a transferência, Zama se sente definhar num canto lamacento do atual Paraguai, entre o cólera e o parasitismo dos colonizadores brancos.

Mas o que começa com tom de Kafka ganha, mais para o final, contornos de Joseph Conrad e seu "Coração das Trevas": assombram por ali as histórias de um bandoleiro impiedoso, Vicuña Porto, que foi "morto mil vezes".

MEU SANGUE LATINO

Candidato da Argentina ao Oscar, o épico "Zama" tem um pé no Brasil. Trata-se de uma coprodução com o país operada por meio da produtora Bananeira Filmes. O braço brasileiro responde por cerca de 22% do total do orçamento do longa, em torno de US$ 2,5 milhões (cerca de R$ 8 mi).

No elenco estão Matheus Nachtergaele e Mariana Nunes, a direção de arte e a montagem são tocadas por brasileiras, e a trilha sonora é composta pelos índios tabajara.

"O filme tem uma premissa latino-americana, se passa quando ainda nem se sabia que viraríamos Brasil ou Argentina. A parceria foi orgânica", afirma a produtora Vania Catani, da Bananeira.

Catani já firmou coproduções com os argentinos nos longas "Jauja", de Lisandro Alonso, e "Ardor", de Pablo Fendrik, ambos de 2014.

O país vizinho é hoje o maior sócio do Brasil no campo do audiovisual. Em 2016, a Ancine (Agência Nacional do Cinema) destinou, via edital, R$ 1,9 milhão para coproduções Brasil-Argentina. A cifra é o dobro do que foi firmado em parcerias com Portugal, que está em segundo lugar.

Nos últimos dez anos, foram 14 os longas brasileiros coproduzidos com a Argentina; três deles feitos em 2016.

"Espero que, com esse filme, vejam o quanto as nossas culturas podem enriquecer um mesmo relato quando se juntam", diz a diretora.

ESPIRAL DELIRANTE

Após lançar o drama psicológico "A Mulher sem Cabeça" (2008), Lucrecia Martel planejava adaptar a HQ distópica "O Eternauta", do conterrâneo Héctor G. Oesterheld.

Mas abandonou o futuro para olhar pelo retrovisor com "Zama". "Pense nas novelas de época que não nos dizem nada da nossa história. Nosso passado é uma construção mentirosa", diz.

Domenico Stinellis/AP
A diretora Lucrecia Martel em retrato feito em Veneza
A diretora Lucrecia Martel em retrato feito em Veneza

Seu filme, afirma, é uma forma de "deslegitimar a ideia que nós, latino-americanos, temos da nossa história."

Lucrecia criou um universo que remete ao melhor que o cinema já produziu a partir de jornadas delirantes: da obra do tailandês Apichatpong Weerasethakul, passando pelo Coppola de "Apocalypse Now" e pelo Werner Herzog de "Aguirre, a Cólera dos Deuses" e "Fitzcarraldo".

"Sobretudo na Argentina, com sua cultura de imigrantes, nos custa reconhecer a nós mesmos na parte indígena", conta a diretora, nascida em Salta, cidade cercada por rochas avermelhadas no norte do país. Ela diz ter tentado captar "o absurdo desses homens brancos se fazendo donos daquelas novas terras."

A primeira cena já escancara a violência que é a viga da empreitada colonial, com o protagonista estapeando uma nativa que caçoava dele.

Não que "Zama" se resuma a um libelo contra o colonialismo. Mas o tal "absurdo" está sempre presente na tela: seja nos índios dizimados pela doença ou nos escravos forçados a atuar como ventiladores manuais aos senhores.

O som do filme também contribui para a construção dessa espiral delirante: algumas vezes alto a ponto de perturbar, em outras, como se descolado do que está a ocorrer nas cenas.

"O som não é meramente ilustrativo do que se vê", afirma. "Quando penso numa obra, a ideia do som sempre vem antes do que a ideia da imagem, que vai se construindo lentamente enquanto vou rodando o filme."

A construção meticulosa talvez seja uma das razões que levaram a diretora a ficar tanto tempo sem lançar um filme. Lucrecia despontou em 2001, com "O Pântano", e foi filiada à geração do "boom" do cinema argentino, que revelou os nomes de Juan José Campanella e Fabian Bielinsky.

"Não sou um produto", rebate a diretora, sobre a pressão para fazer mais longas (foram só quatro, em 16 anos). "Faço as coisas quando tenho uma ideia. E leva-se muito tempo para ter uma. Não sinto que perdi minha vida nesse tempo.


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