Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Viagem de brasileiro pela África inspira 'Gabriel e a Montanha'

Divulgação
Caroline Abras e João Pedro Zappa no filme
Caroline Abras e João Pedro Zappa em cena de "Gabriel e a Montanha", que estreia em 2 de novembro

GABRIEL E A MONTANHA (ótimo)
DIREÇÃO Fellipe Barbosa
ELENCO João Pedro Zappa, Caroline Abras, Leonard Siampala
PRODUÇÃO Brasil, 2017
Veja salas e horários de exibição.
p(star). *

Uma impressão fugaz ao ver "Gabriel e a Montanha": parece um "Hatari" pós-colonialista. A impressão vem da bela corrida de uma girafa, quando Gabriel está num ônibus. No clássico filme de Howard Hawks também há uma bela corrida de girafas. Mas ali os caçadores brancos buscam laçá-las para enviar a um zoológico.

O mundo se transforma. Não inteiramente, mas se transforma. Hoje Gabriel, o jovem brasileiro que peregrina pela África após concluir seus estudos, ao encontrar os habitantes locais sabe que são homens de pleno direito, não seres que só interessam pelo que têm de exótico.

No entanto, ainda são o Outro: o desconhecido. Ou, mais precisamente: o desconhecido que vive em nós, pois está em nossa origem, em nosso sangue.

A opção de Gabriel tem algo de puro, de generosidade absoluta. Um jovem economista recém-formado, de classe média alta, branco, podia muito bem se encher de dinheiro no mercado financeiro, não podia? Gabriel segue, no entanto, em outra direção: quer conhecer esse outro, descobrir-lhe o valor e a sabedoria.

Esse é o centro de sua peregrinação. Gabriel, vamos dizer logo, morrerá. E ninguém comece a reclamar desde já: o primeiro (e magnífico) plano do filme é aquele em que descobrem o seu corpo inerte.

Existe pureza, generosidade, vontade de aprender, desprendimento no jovem brasileiro. Mas existe também uma segurança de si mesmo característica de nossas classes altas. Gabriel tem a consciência de que pode tudo, inclusive safar-se das situações mais ingratas. Pode-se dizer: por mais que fujamos, nossa condição de classe não nos abandona.

A peregrinação de Gabriel nos interessa mais pela viagem do que por seu ponto final, de todo modo. Por exemplo: logo no início entender a relação dos habitantes locais com a natureza, a maneira como se calçam, até mesmo partilhar o colorido de suas vestes são gestos fundamentais desse trajeto.

Se Gabriel morreu, Fellipe Barbosa em todo caso trouxe a nós um tanto desse conhecimento ao retraçar o mais fielmente possível a viagem de seu antigo colega de escola. Fellipe mesmo esclarece que existe uma proximidade entre Gabriel e o Cândido criado por Voltaire: ambos dotados de um otimismo que os exclui do mundo dos vivos.

A subida final de Gabriel poderia até comprovar essa assertiva: Gabriel despreza o conselho da branca que vive na montanha há anos e lhe recomenda trocar as sandálias por sapatos. Ah, a humildade pode se transformar com facilidade em autossuficiência. Entre os brasileiros sobretudo.

Seria essa a causa da morte de Gabriel? Pode ser. Mas ele chega ao topo, tira uma selfie com a bandeira do Brasil agitada, como a afirmar o destino triunfal de nossa nação. Em seguida, um pouco como o Brasil, sucumbirá à arrogância: a neblina torna a descida, que parece tão mais fácil, fatal.

"Gabriel e a Montanha" não tem sequer um plano rodado no Brasil. E, no entanto, é difícil imaginar um filme mais inteiramente brasileiro.

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Mais sobre filmes e diretores na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no especial do 'Guia'.


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