Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Som e Caio Blat marcam 'Grande Sertão: Veredas'

Lenise Pinheiro/Folhapress
Os atores Luisa Arraes e Caio Blat em cena do espetáculo 'Grande Sertão: Veredas
Os atores Luisa Arraes e Caio Blat em cena do espetáculo 'Grande Sertão: Veredas'

GRANDE SERTÃO: VEREDAS (muito bom)
QUANDO sábado (21), às 20h30, e domingo (22), às 18h30
ONDE Sesc Consolação, rua Dr. Vila Nova, 245, tel. (11) 3234-3000
QUANTO de R$12 a R$ 40
CLASSIFICAÇÃO 18 anos

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Em certa passagem de "Grande Sertão: Veredas", o narrador Riobaldo apresenta o sertão para o "doutor" da cidade com quem conversa sobre sua vida de jagunço: os brejos, os buritis, os bichos, o brilho da noite. Os vários pássaros também, e o bem-te-vi. Riobaldo encuca que "atrás e diante de mim, por toda a parte", o mesmo bem-te-vi, um só, o persegue: "me acusando de más-horas que eu ainda não tinha procedido".

Bem-te-vis que enxergam além ou urubus que espreitam a morte, pássaros acompanham Riobaldo na encenação concebida e dirigida por Bia Lessa, adaptação do romance de 1956 do mineiro João Guimarães Rosa. Com o corpo curvado e braços que oscilam, os atores se movem pelo palco em um coro, que depois será de bois, calangos, caules retorcidos, gente doente, cada grupo com seu gestual.

O corpo é o único suporte figurativo de "Grande Sertão: Veredas"; não há cenários, adereços, o figurino é neutro. A brutalidade do sertão e a exuberância das veredas não estão em cena senão pela evocação do som.

Uma rica paisagem sonora, que chega aos espectadores por fones individuais, se opõe à nudez do palco e da estrutura tubular que abriga o público. A sonorização traz os pássaros, as festas, a gente, a guerra, e oferece aos ouvintes uma mixagem das vozes dos atores.

Se por vezes o recurso provoca um alheamento da situação presente, ele também alcança grande beleza –como quando dá materialidade à narração retrospectiva do romance ao simular uma voz em off que comenta a ação que se desenrola no palco.

ELENCO

O apelo à audição é um achado conceitual do espetáculo, e é Caio Blat que garante o sucesso dessa aposta na abstração das palavras. Como no romance, Riobaldo visita em um discurso labiríntico os temas do sertão e sua gente, da jagunçagem, da dúvida sobre a existência do Diabo e de seu amor, Diadorim.

Na excelente interpretação que Blat faz do narrador-protagonista, a linguagem estilizada de Guimarães Rosa não escapa para a poesia declamada, mas se enraiza no universo sertanejo como se não fosse construção elaboradíssima, e sim recolha da perspicaz fala do povo.

É uma pena que sua densidade e eloquência não encontrem companhia no elenco irregular, que apresenta deficiências. Pela importância da personagem, chama atenção a falta de nuances de Diadorim (Luiza Lemmertz); sem a dualidade do "ódio sossegado" que nutria na paciente busca de vingança por seu pai, Diadorim resulta apenas ríspida.

O grand finale da narrativa também não faz jus à personagem. Ainda que se justifique pela opção da encenação pela abstração, o desvelamento de sua identidade recorre a uma desmaterialização que destoa da fisicalidade do espetáculo e acaba por amortecer o choque.


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