Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Mineiro 'Arábia' compõe o melhor do cinema brasileiro recente

Divulgação
Cena do filme 'Arábia', dos diretores Affonso Uchoa e João Dumans
Cena do filme 'Arábia', dos diretores Affonso Uchoa e João Dumans

ARÁBIA (ótimo)
DIREÇÃO Affonso Uchoa e João Dumans
ELENCO Aristides de Sousa, Murilo Caliari, Renata Cabral
PRODUÇÃO Brasil, 2017
QUANDO 20/10, às 21h (Espaço Itaú - Frei Caneca); 21/10, às 15h50 (Reserva Cultural)

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Os mortos sempre têm algo a dizer. Como o trabalhador de "Arábia", cujo diário encontrado após seu desaparecimento. Sendo mineiro, será um observador agudo: não um revoltado, nem um transformador do mundo. Esse mundo ele contempla, registra, resgata.

Essa descrição, diga-se, vale bastante para o melhor cinema brasileiro recente. Desde 1990, perdeu-se a ideia de um cinema de intervenção (proposto por Glauber Rocha). Mas o que pôr no lugar?

Outras artes por vezes reagem mais rápido. Nosso documentário soube elevar rápido a escuta do mundo à categoria de prioridade absoluta (Eduardo Coutinho à frente, mas não só).

Na ficção, é mais difícil pois trata-se de mudar toda a dramaturgia. A geração do fim dos anos 1990 quebrou a cara e, de certo modo, abriu caminho para o pessoal que completou a costura e agora faz um cinema de primeira linha.

Os exemplos vêm de diversos lugares. De Pernambuco, claro (os pioneiros), de Brasília (Adirley Queirós, Iberê Carvalho), do Rio (Fellipe Barbosa), de SP (Filmes do Caixote) etc. E de MG, sobretudo de Contagem, de onde aliás vêm Affonso Uchoa e João Dumans, diretores de "Arábia".

Ao criar o trabalhador eles lhe dão o dom da observação. Quase todo o texto é em off: a leitura do diário entra em contraponto às imagens. Cristiano não se queixa: vai da plantação à cidade, daí à prisão, da prisão à usina. É um andarilho.

Não lhe importa muito viver: sobreviver é o indispensável. Mas isso também supõe encontros profundos, como a moça da tecelagem que o acolhe e a quem amará para sempre.

Nunca sabemos se as relações foram tão intensas por serem únicas, por povoarem essa vida solitária, por representarem um ponto fixo na errância de Cristiano. Mas existiram: esse é o ponto –existir.

Em muitos momentos, sobreviver. Nada é extraordinário em sua vida. (Mesmo em outras classes sociais a errância parece ser uma situação cada vez mais frequente).

O filme se mostra um paciente exercício de observação. Antes de afirmar mostra. E, ao mostrar, pergunta: quem, afinal, somos nós? Nós, os pobres, nós, o Brasil, nós, o mundo. Bem mineiro: parte de uma porção muito pequena, mas ambiciona o todo. E chega.

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Mais sobre filmes e diretores na 41ª Mostra Internacional de Cinema de São Paulo no especial do 'Guia'.


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