Folha de S. Paulo


Ministro e deputados batem boca em audiência sobre 'Queermuseu' e MAM

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A ideia era ouvir o ministro Sérgio Sá Leitão (Cultura) sobre o "Queermuseu", mostra gaúcha que, para críticos, fazia apologia a pedofilia e zoofilia, e a exposição no MAM paulistano que trouxe interação entre uma criança e um artista nu —ambas realizadas com incentivos fiscais da Lei Rouanet.

O que se viu em audiência na Câmara nesta quarta-feira (18), contudo, aproximou-se mais de um ringue que opôs ministro, deputados a favor "da família" e Glauber Braga (PSOL-RJ), voz solitária pró-mostras entre os colegas.

Já no fim do debate, apresentando-se como católico, Givaldo Carimbão (PHS-AL) perguntou se o ministro acharia razoável expor sua progenitora como artistas do "Queermuseu" o fizeram com Virgem Maria, a quem chamou de "minha mãe".

Obras da exposição cancelada satirizavam e sexualizavam a mãe de Jesus, como uma em que ela aparecia acalentando um macaco. Carimbão lançou a hipótese da mãe de Leitão retratada "de pernas abertas", com genitália à mostra.

Leitão se exaltou e, aos berros e com dedo em riste, acusou o deputado de "ofender minha falecida mãe".

"Ele baixou o nível e ofendeu diretamente a minha mãe, já falecida. De modo gratuito. Fez comentários absurdos. Superou o meu limite. Lamento profundamente", disse Leitão à Folha.

A audiência pública foi encerrada após a celeuma, gota d'água numa sessão acalorada que se estendeu por mais de duas horas.

A certa altura, Braga quase caiu no braço com Delegado Eder Mauro (PSD-PA). A um palmo de distância, em bate-boca com voz alterada, os dois foram apartados por seguranças da Casa e por um colega, Pastor Eurico (PHS-PE).

Mauro disse que não daria "porrada aqui dentro", mas estava disposto a levar a discussão às vias de fato fora da Câmara.

"Eu quero ver se tu é homem!", gritava o paraense a Braga, que respondeu com uma provocação: "Tá nervoso?".

"Tô defendendo criança inocente", rebateu o delegado. "Vai botar teu filho pra passar a mão em macho!", completou, com o dedo apontado para a cara do desafeto político.

O entrevero se alongou por quase cinco minutos, até que Alberto Fraga (DEM-DF), que presidia a audiência pública, sugeriu: ou a sessão continua "ou vocês caem na porrada".

Feliciano também brigou com Braga e o acusou de chamar sua mãe de "puta". Ameaçou deixar a sala e depois se desculpou pelo destempero ("a esquerda tira a gente do sério").

O clima no plenário 12 da Casa foi pesado do início ao fim.

Sob intenso bombardeio de deputados que evocavam a "defesa da família" contra a "imundice" da cena artística, Leitão lá estava como convidado a "prestar esclarecimentos sobre exposições realizadas com recursos públicos, onde foram constatados ilícitos penais que causaram reação social e que resultaram em conflitos com reflexo na segurança pública", conforme indicava a placa na porta.

Deputados questionaram a falta de uma condenação enfática do Ministério da Cultura às exposições, deram murros sobre a mesa para expor suas opiniões e levantaram cartazes com cenas das mostras que traziam "pornografia travestida de cultura".

A plateia foi dominada pela ala conservadora da Câmara, com vários membros da bancada evangélica, como Marco Feliciano (PSC-SP) e João Campos (PRB-GO), ex-presidente da frente religiosa. Também presente: a psicóloga Rozangela Justino, que trabalha no gabinete de um parlamentar aliado de Silas Malafaia, Sostenes Cavalcante (DEM-RJ), e que ficou conhecida por defender a terapia para pacientes homossexuais, apelidada de "cura gay".

Feliciano reclamou de obras do "Queermuseu", como a de "uma hóstia que trazia 'vagina' escrito".

Argumentou o deputado-pastor: a imprensa fez um "auê" quando, em 1995, um bispo da Igreja Universal chutou a imagem de uma santa. "Ok, isso foi crime", disse.

Mas por que a mídia se calou quando a mostra em Porto Alegre exibiu a performance "Atos da Transfiguração: Desaparição ou Receita para Fazer um Santo"?

Nela, o artista usa um ralador para transformar uma imagem de gesso de Nossa Senhora Aparecida em pó –depois jogado sobre seu corpo nu. Os episódios de 1995 e 2017 se equivalem no desrespeito à fé, segundo o deputado do PSC.

"Essas pornografias travestidas de cultura" estão "virando moda no Brasil", e tudo às custas do contribuinte, disparou Laerte Bessa (PR-DF). "A Constituição não fala em pornografia." Não adianta querer se impor isso num país com o nisso, que é um país de família."

Glauber Braga questionou: o que seus colegas querem? Que projetos, para usufruirem da Rouanet, passem por uma comissão avaliadora com Silas Malafaia e Feliciano?

Leitão se posicionou contra o "dirigismo cultural" e afirmou que "a liberdade de criação, expressão e manifestação" são direitos resguardados pela Constituição.

"Não podemos de maneira nenhuma incorrer na questão da censura."

O que não quer dizer que limites inexistam, continuou o ministro. Para evitar desrespeito ao ECA (Estatuto da Criança e do Adolescente), exposições devem ter classificação indicativa por força de lei, como já acontece no audiovisual, defendeu.

Feliciano rebateu: em certos casos, a classificação deveria ser "proibitiva, e não apenas indicativa", já que há pais dispostos a levar seus filhos para conferir obras "inadequadas". Foi o caso, a seu ver, da mãe da menina que interagiu com um homem nu no MAM.

Alberto Fraga abriu audiência criticando o "Quérmuseu" (colegas logo corrigiram a pronúncia aportuguesada para "Queermuseu", e ele riu e se desculpou: "Não sei falar inglês").

"As crianças que visitaram a mostra foram expostas a vídeos criminosos", afirmou, destacando um deles, em que "um homem recebe jato de sêmen". Também se mostrou desgostoso com o trabalho que faz alusão ao tumblr "Criança Viada", "muito apreciado pela comunidade LGBT".

"A virtude está no meio", afirmou Leitão. Citava Aristoteles para propor um diálogo "ponderado" que conciliasse os dois lados. Por hoje, ao menos, nada feito.

*

Leia na íntegra a nota enviada pelo Ministério da Cultura:

O Ministério da Cultura vem a público prestar os seguintes esclarecimentos:

1) A convite das Comissões de Cultura e de Segurança Pública e Combate ao Crime Organizado, o ministro da Cultura, Sérgio Sá Leitão, participou hoje de audiência pública na câmara dos deputados;

2) Em sua fala, o ministro tratou da posição do Ministério da Cultura em relação a exposições artísticas realizadas recentemente em Porto Alegre e São Paulo, e prestou os esclarecimentos pedidos pelos deputados;

3) Sá Leitão reforçou a posição do MinC favorável à extensão da classificação indicativa para exposições de artes visuais;

4) O ministro respondeu com serenidade a todas as perguntas e compartilhou as informações pedidas, reafirmando sua convicção de que o assunto deve ser tratado com equilíbrio e racionalidade;

5) Em determinado momento da audiência, houve colocações ofensivas dirigidas ao ministro, sem qualquer relação com o objeto ou com o tom do conjunto da audiência.Diante das repetidas ofensas, o ministro encerrou sua participação;

6) Após o incidente, o deputado Alberto Fraga, da Comissão de Segurança, ligou para o ministro Sá Leitão e pediu desculpas em nome da Comissão e dos deputados que a compõem. O deputado Thiago Peixoto, presidente da Comissão de Cultura, fez o mesmo;

7) O ministro reitera seu respeito a todos os parlamentares e ao Congresso Nacional, e seu desejo de construir um debate amplo e respeitoso, fundado no verdadeiro diálogo, que possa contribuir de fato para o fortalecimento da cultura, da democracia e do estado de direito em nosso país.


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