Folha de S. Paulo


ANÁLISE

Em Kazuo Ishiguro, tudo que é perturbação emerge devagar

Kazuo Ishiguro é um agraciado relativamente jovem para os padrões do Nobel. Perto de completar 63 anos, o autor nascido em Nagasaki reúne uma obra em que se sobressaem romances e contos.

Radicado na Inglaterra desde os cincos anos, Ishiguro adotou o inglês como idioma de escrita.

Seu histórico inclui uma aproximação com a ficção científica e outra com a literatura fantástica –ainda que ambas as classificações, dentro do estilo e das construções propostas pelo autor, sejam
um tanto imprecisas. Apesar disso, suas narrativas costumam ser tradicionais na forma e na linguagem.

Vestígios Do Dia
Kazuo Ishiguro
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O trabalho mais elogiado de Ishiguro é "Os Vestígios do Dia". Ambientado na Inglaterra, o romance, cuja trama é narrada por um mordomo que se ressente da perda da velha ordem, foi vencedor do Booker de 1989 e adaptado para o cinema em 1993.

O mais recente romance de Ishiguro, "O Gigante Enterrado" (2015), foi desancado por James Wood, crítico da revista "The New Yorker", que o acusou de reunir uma série de clichês e platitudes.

Sem ser brilhante, o livro constrói uma boa reflexão em um cenário que admite fadas, ogros e dragões. Lutando contra a perda da memória, um casal de idosos empreende uma pequena viagem em busca do filho desaparecido.

Por um lado, "O Gigante Enterrado" delineia uma trama singela cuja metáfora principal, sobre o amor e a perda, fica clara para a maioria dos leitores –uma metáfora que se ampara sobretudo na construção do casal protagonista, uma vez que apela para sua memória afetiva.

Por outro, é uma trama poderosa sobre a elaboração da memória coletiva, especialmente a que procura assimilar eventos trágicos. Enterrado, o gigante permanece sob a superfície, mas seu contorno ainda é perceptível.

DENOMINADOR COMUM

Curiosamente, a metáfora do gigante enterrado pode ser aplicada à própria literatura de Ishiguro. Ela funciona como seu denominador comum.

Como em "O Gigante Enterrado", em "Não me Abandone Jamais" (2005) Ishiguro oculta o que há de perturbador sob uma linguagem e uma condução aparentemente singelas.

Ele não tem pressa e, mais importante, não quer desenterrar todos os sentidos e implicações –quase sempre graves, o que parece destoar do tom contido. Boa parte dos conflitos se encontram sob a superfície, seus contornos intuídos pelos leitores.

É como se Ishiguro operasse uma câmera que capta (lentamente) o detalhe e o todo, alternando um e outro sem pressa. Toda imersão na atmosfera de seus romances, ou em seu imaginário, é gradual.

É só na metade do livro que percebemos que os protagonistas de "Não me Abandone Jamais", que de início são três crianças em um internato, estão inseridos em um contexto mais trágico do que poderíamos supor à primeira vista.

Mais uma vez, como em todos os livros do escritor, privado e coletivo estão em tensão permanente.

Graças à adaptação para o cinema dirigida Mark Romanek, é possível que "Não me Abandone Jamais" seja o trabalho mais conhecido de Kazuo Ishiguro. Quem chega ao livro graças ao filme pode, no entanto, se decepcionar com o avançar lento da narrativa.

Na mesma resenha em que desanca "O Gigante Enterrado", Wood alfineta "Não me Abandone Jamais", que, diz, reúne algumas das cenas mais tediosas da ficção.

Essa lentidão, no entanto, parece necessária para que Kazuo Ishiguro consiga traçar com cuidado e precisão os contornos daquilo que está bem enterrado em todos os seus livros.


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