Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Autor confronta prazer de viver e tradição em 'Gostar de Ostras'

Rodrigo Fonseca/Divulgação
O escritor e jornalista Bernardo Ajzenberg
O escritor e jornalista Bernardo Ajzenberg

GOSTAR DE OSTRAS (muito bom)
AUTOR Bernardo Ajzenberg
EDITORA Rocco
QUANTO R$ 29,90 (192 págs.)

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A ostra não é um alimento "kosher". Ou seja, não é apropriado, segund o as leis dietéticas da tradição judaica. É bom ter isso em mente ao ler "Gostar de Ostras", novo livro de Bernardo Ajzenberg.

A religião e seus costumes passam ao largo desse romance ambientado em São Paulo, mas a história judaica (em especial, o genocídio nazista) vai se insinuando ao longo da narrativa, em contraponto com as transformações do narrador.

Jorge Blikstein –ou Jorginho, como é chamado por seus vizinhos franceses Rachelyne e Marcel Durcan– é um jovem jornalista que leva vida insossa como repórter de uma revista especializada em transportes.

Discreto, diligente e silencioso, ele percebe que sua "mornidão existencial" soterra um "mundo flutuante de segredos familiares" quando se muda para um apartamento que ecoa o ruidoso cotidiano do casal francês, moradores do andar de cima.

A expansiva simpatia dos Durcan, cuja "felicidade permanente" soa como insuportável provocação ao "esmorecimento estrutural" do narrador, acaba por cativá-lo.

Rachelyne e Marcel são octogenários que professam o voluntarioso "savoir vivre" gaulês, misto de desprendimento material e hedonismo libertário que os leva a transformar uma simples reunião de condomínio em assembleia, a participar de manifestações (estamos no auge dos protestos de 2013) e a invadir a privacidade alheia para dar lições de culinária e artes manuais (o retorno à "coisa concreta" como forma de repor vida num mundo em que "tudo é intangível").

Mais especificamente, o casal instiga Jorginho a gostar de ostras e a cultivar a memória. Os dois elementos, tão díspares, sugerem uma gama de significados nesse romance que jamais cai em abstrações, fazendo o sentido emanar das vivências mais prosaicas –marca da prosa de Ajzenberg, que desde "Olhos Secos" (2009) e "Minha Vida Sem Banho" (2014, prêmio Casa de as Américas) vem incorporando também um enfrentamento com suas raízes judaicas.

Pois se a quebra do tabu alimentar indica como os Durcan trocaram sem maiores conflitos o peso da tradição pelas propriedades afrodisíacas do molusco, seu exílio voluntário no Brasil se dá na esteira de um trabalho de luto que, indissociável da experiência judaica na Segunda Guerra, insiste em não se realizar, envenenando as promessas de felicidade.

Jorginho vai narrando com pacífica perplexidade os efeitos do convívio com esse casal de velhos festivos e erotizados, que reacende sua sexualidade precocemente entorpecida e o faz exumar seus próprios traumas familiares.

Gostar de Ostras
Bernardo Ajzenberg
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Num hábil jogo de espelhos, o narrador aprende com eles a incorporar a tragédia ao presente, enquanto Rachelyne e Marcel transferem a Jorge uma tarefa que eles mesmos não conseguirão realizar plenamente.

A carta que Rachelyne escreve a Marcel, no momento mais desconcertante de "Gostar de Ostras", expõe o caráter irredutível das diferentes tragédias, além de incorporar trechos do diário de uma sobrevivente de Auschwitz e de uma canção de Mahler (sobre poema de Friedrich Rückert), assinalando os diferentes registros –o espontâneo e o erudito, a ironia e a gravidade– da prosa de Ajzenberg.


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