Folha de S. Paulo


Opinião

Festival de Brasília é palco de embates em seu 50º aniversário

Ricardo Teles/Divulgação
Celso Timoteo Pereira e Alexandre de Sena em cena de
Celso Timoteo Pereira e Alexandre de Sena em cena de "Vazante", de Daniela Thomas

Não deixa de ser um modo raro de festejar o 50º aniversário de um festival de cinema, mas é aos 53 anos que o Festival de Brasília do Cinema Brasileiro comemora o seu, já que três anos foram comidos pelo regime militar (1972 a 1974).

No mais, acontece no momento em que o presidente da República decidiu vingar-se dos "fora, Temer" que no ano passado os cineastas espalharam mundo afora. Não que o pouco prestígio do governo se deva a isso, mas pelo sim pelo não Michel Temer houve por bem vetar a renovação da Lei do Audiovisual.

A mobilização de atores e cineastas foi imediata e conseguiu com que fossem ouvidos por congressistas. Claro, isso serviu para os analistas políticos confirmarem que Rodrigo Maia, presidente da Câmara dos Deputados, está em conflito com Temer.

Ou seja: a sorte da Lei do Audiovisual depende da vontade de Maia de destronar o atual presidente da República. Se fosse vivo, Shakespeare escreveria, quem sabe, um burlesco sobre isso tudo.

Esse drama todo acontece com os filmes brasileiros a caminho, desde "Aquarius", de certo reconhecimento internacional, como comprovam as críticas entusiásticas a "Gabriel e a Montanha" (já lançado com êxito na França), de Fellipe Barbosa, e "Era uma Vez Brasília", de Adirley Queirós,na França, além do prêmio do Júri de Locarno para "As Boas Maneiras", de Marco Dutra e Juliana Rojas.

Destes, só estiveram em Brasília Adirley Queirós (com "Era uma Vez...") e Juliana Rojas, com um curta-metragem.

DEBATES

O festival serviu ainda para que questões de gênero e etnia fossem levantadas. Bem mais durante os debates matinais do que durante os filmes propriamente ditos.

O linchamento de "Vazante", de Daniela Thomas (que causou polêmica pelo retrato da escravidão), talvez prove o estado de desrespeito da plateia em relação à arte e aos artistas: usam-se procedimentos inquisitoriais para criticar não os filmes, mas o que se julga serem posturas políticas. Não é raro sugerir cortes aos autores, ou até mesmo que o filme não seja lançado (caso de "Vazante").

Nada mais parece importar, nos debates, além de reivindicações específicas: de negros, mulheres, homossexuais, classe média esquerdista idem etc. Sem julgar o valor ou a necessidade de sua luta, parece que o cinema ali só importa como veículos de propaganda. Voltamos aos anos 1930.

Na batalha étnico-feminista saíram-se melhor, cinematograficamente, os negros: "O Nó do Diabo" pode ser confuso, pois originalmente foi concebido como uma série para TV. Os cinco episódios independentes foram juntados no longa, tremendamente desigual, no qual o que importa mesmo é o segundo episódio, de Gabriel Martins (apesar da banda de som horrível).

De modo geral, no entanto, por vezes se tem a impressão de que o festival é uma reprodução dos tresloucados impasses nacionais. Ou, como se diz no belíssimo "A Moça do Calendário", filme de Helena Ignez exibido fora de competição, o Brasil existe entre a fantasia e a realidade.

A propósito, "A Moça do Calendário" é possivelmente o melhor de Ignez: ela se afirma como mestra. Mesmo.


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