Folha de S. Paulo


'Design é serviço', diz curador de mostra sobre produção do Brasil

O pesquisador e curador português Frederico Duarte estuda design brasileiro há oito anos e explica aqui como selecionou as participações da mostra "Como se pronuncia design em português - Brasil hoje", que fica até 31 de dezembro no palácio Condes da Calheta, em Belém, Lisboa.

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DESIGN É SERVIÇO
A ideia de um designer enquanto prestador de serviços está muito removida do discurso de design, sobretudo na paupérrima "paisagem mediática" que trata esta atividade. Tudo aponta para o autor, para o rarefeito, para o exclusivo, para o excêntrico, para o original. Grande parte do meu trabalho enquanto crítico e curador dedica-se a restabelecer a ideia de que o design é um serviço prestado diariamente em coisas que fazem parte do nosso dia-a-dia.

IDENTIDADE E CONTEXTO
Toda a minha pesquisa no Brasil, desde 2009, é uma procura do contexto para a prática do design neste país tão importante e particular. A conversa sobre a identidade - ou pior ainda, a "Brasilidade" do design - não me interessa nada. Interessa-me sim o contexto, cada vez mais.

Aliás, uma das coisas que me interessa cada vez mais no design e no design do Brasil em particular é a identificação de identidades contestadas e discursos dominantes no projeto. Como é que um projeto ou objeto ao ser designado como "brasileiro" está, no ato dessa designação, a ser uma instância de exclusão ou a manifestação de um privilégio? Esse privilégio pode ser aquela pessoa quem tem muito dinheiro para gastar numa casa ou numa cadeira "de autor" mas também de quem vive na cidade "do asfalto" face a quem vive numa favela, por exemplo.

Por isso é que eu gosto muito do projeto Placas de Rua da Maré da Laura Taves (que descobri no pavilhão do Brasil da Bienal de Arquitetura de Veneza) pois este consegue entretecer a cidade formal na cidade informal através de uma continuidade do projeto - de uma configuração atribuída pelo designer Aloísio de Magalhães em 1979 para agora, num material e esquema de produção e implementação radicalmente diferente mas igualmente eficaz. O projeto Bailes Black do Danilo de Paulo (que descobri na última edição da Bienal Ibero-Americana de Design) também faz isso de uma forma muito delicada e eloquente, dando voz a uma parte da cultura negra brasileira que foi também urbana, pan-africana e cosmopolita.

MOBILIDADE SOCIAL
A forma como os designers têm abordado o novo grupo de consumidores tem muitas vezes revelado preconceitos de classe (eu identifiquei vários nas minhas entrevistas) e considero que os próprios designers poderão vir a melhor entender e prestar serviços a esta classe quando se observar um aumento, neste grupo profissional, de designers oriundos de classes mais baixas - e aí que os estudantes cotistas poderão vir a desempenhar um papel fundamental não só no ensino - influindo na agenda e currículo dos cursos, na convivência e discussão entre classes sociais - mas também na prática do design no Brasil, informando o seu processo com a sua experiência de vida e observação. Penso que o maior potencial do design brasileiro está nestes designers.

AMPLO ESPECTRO
Quis aguçar o meu olhar e também aumentar a minha rede de referências para incluir instâncias do design muito além daquelas que aparecem em museus ou em publicações de design. Por isso quis ter um projeto de arquitetura como a Casa da Vila Matilde, ou um produto-serviço como o Programa Mais que Água da Brastemp, ou um mapa de transportes públicos como o do MOVE de Belo Horizonte, ou o dingbat cobogó.

SEM ÍCONES
Entre os valores que nortearam minhas escolhas estão querer acabar com a ideia de "ícone de design." Isso é uma coisa que cada vez mais me irrita nas exposições, museus e publicações de design: a procura da peça icônica, em algo que queime a retina, que fotografe ou "fique bem". Eu abomino os museus que penduram cadeiras no ar, que as tornam em imagens, versões bidimensionais.

Por isso é que a seção de mobiliário é composta por variações do mesmo projeto: 2 poltronas, 3 bancos, 4 luminárias, 5 cadeiras. Outro exemplo é as Havaianas; quando eu estive na sede da Alpargatas em São Paulo eu disse à pessoa da equipe de design com quem me reuni que gostaria de mostrar as Havaianas sem mostrar a chinela. E é isso que vamos fazer: revelar o processo criativo dos designers da marca, que neste momento têm de construir em cima de um ícone (lá está) de uma marca que hoje está presente em mais de 1.100 produtos.

GAMBIARRA
Há uma característica muitas vezes atribuída ao design brasileiro que me parece muito questionável: a ideia de gambiarra, de improviso, de fazer alguma coisa com pouco. A gambiarra é um tema problemático e não vou abordá-lo aqui em detalhe. Enquanto crítico e curador interessa-me revelar como o processo de design identifica e trabalha com caraterísticas como a gambiarra e não mostrar exemplos de "design" que "falam" da gambiarra, reafirmando o status quo e a desigualdade social do Brasil. Sim, estou a falar da cadeira Favela e de uma série de criações que ela inspirou.

LIVROS DE DESIGN
Tentei fazer uma seleção relativamente ecumênica sobre design e designers brasileiros, incluindo títulos mais superficiais ou introdutórios e outros mais densos. Face à produção em Portugal a produção de livros sobre design no Brasil não é claramente o que poderia ser face ao tamanho do país. Porém esta produção é limitada pelo tamanho do mercado. Algo que deve ser enfatizado é a produção acadêmica sendo vertida para livros de acesso generalizado. A livraria inclui vários exemplos desses e gostaria até de incluir mais. O crescimento da produção acadêmica em design é muitíssimo notório no Brasil. Mas faltam mais exemplos de livros que saem da academia "cá para fora". É urgente que haja mais editoras e autores que estejam dispostos a isso.

FONTES DE PESQUISA
Posso dizer que em primeiro lugar são as pessoas que vou conhecendo no caminho nas quais vou buscando e procurando referências. Que podem chegar de uma conversa, de um email, de uma referência num livro ou artigo, ou até num post do Facebook. Isso exige uma disponibilidade para olhar para o lado, fazer perguntas, mas sobretudo para me colocar "no terreno." Por exemplo, eu cheguei ao SAC 24 (Sistema de Acompanhamento de Custódia 24 Horas), a tornezeleira eletrônica projetada pela Megabox Design para a SpaceCom, horas depois de aterrar em Curitiba no ano passado.

Fui até a PUC onde Aguilar Selhorst, da MegaBox, dá aulas e tivemos uma das conversas mais esclarecedoras sobre o trabalho de um dos estúdios de design mais interessantes do país que, segundo ele, não tem trabalho "sexy" mas que se dedica a setores fundamentais como o agronegócio e o monitoramento eletrônico de sentenciados.

Outro exemplo é a Campanha Não-Eleitoral, da revista Piseagrama, que foi a primeira peça que eu "adquiri" para a exposição e foi também o primeiro email que enviei em preparação da viagem de 2016.

PARALELOS ENTRE AS PRODUÇÕES BRASILEIRA E PORTUGUESA
O contexto para a prática do design em Portugal no século 21 é muito diferente. Somos um país da União Europeia de apenas 10 milhões, com um mercado totalmente aberto e que sofreu uma grande desindustrialização desde os anos 1990. Mas que agora está na moda em termos internacionais, principalmente pelo turismo. As indústrias do calçado e do têxtil souberam dar a volta e o Made in Portugal é uma coisa vista com bons olhos por muitas marcas e consumidores europeus.

Isso infelizmente tem mais a ver com o baixo custo da mão de obra. Entretanto de há uma década para cá observa-se também uma espécie de onda nostálgica, comum a muitos outros países, sobre as marcas e as coisas pré-globalização, o reavivar do artesanato e o orgulho em ser português - uma coisa ainda muito problemática num país que teve a ditadura mais longa da Europa e um dos mais brilhantes chefes da propaganda, que usou o design como ninguém para definir uma estética e um gosto nacional.

Além disto o design português é hoje marcado por uma espécie de fantasma: a cortiça. Parece que para ser um bom designer português tens de fazer qualquer coisa em cortiça. E há muita coisa totalmente errada a ser feita neste material! Ao invés, o Brasil é o 5º mercado interno do mundo, tem um território continental e uma população de mais 200 milhões. Tem também uma enorme riqueza em termos de recursos naturais e, claro, em materiais que, como eu escrevi uma vez num artigo sobre os Fibra design sustentável, são os unsung heroes (heróis não reconhecidos) do design no século 20.

Nesse aspecto e muitos outros o Brasil pode ser um laboratório para muitas ideias, incluindo de design. Portugal também o é, noutra escala. E às vezes é ao identificar as condições únicas para o desenvolvimento de um determinado produto ou solução à escala de uma nação é que podemos falar de um design num âmbito nacional. Um exemplo disso é o Multibanco, o nosso sistema de Caixas Automáticas, iniciado nos anos 1980. O sistema único no mundo foi começado aqui porque os nossos banqueiros juntaram-se e trabalharam de forma colaborativa para criarem um sistema altamente eficiente. O design aqui entra na interface - e não só.


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