Folha de S. Paulo


Dramaturgo argentino permeia de ironia espetáculo de crítica social

Lenise Pinheiro/Folhapress
Actress Jennifer Lawrence attends the
Maria Manoella como Tatana em cena do espetáculo "Ala de Criados"

"A metáfora é um desvio da língua", reflete uma das aristocratas de "Ala de Criados", peça do argentino Mauricio Kartun. "Algum governo de bom gosto deveria proibir a poesia. A poesia e as batatas-doces em calda."

Ditas assim, as frases dessa personagem-narradora refletem a ironia que permeia todo o texto de crítica social.

O trabalho debutou em Buenos Aires em 2009 e ganha agora sua primeira montagem brasileira, com estreia nesta sexta (15) em São Paulo.

Foi Cecilia Boal (que assina a tradução com Rodrigo Arreyes) quem sugeriu a encenação do texto ao diretor Marco Antonio Rodrigues. Conhecido por destrinchar aspectos da sociedade argentina, Kartun, 70, chegou a estudar atuação com Augusto Boal (1931-2009) nos anos 1970.

O dramaturgo aloca sua peça no verão argentino de 1919, na chamada Semana Trágica, quando uma revolta de trabalhadores em Buenos Aires terminou em massacre. O enfrentamento entre o movimento trabalhista e a polícia do governo de Hipólito Yrigoyen deixou 700 mortos.

Mas a ação se passa num clube de veraneio em Mar del Plana, onde estão os primos Tatana (Maria Manoella), Emilito (Gabriel Miziara) e Pancho Guerra (Rodrigo Scarpelli).

Distantes do confronto, distraem-se com banhos de sol, tardes regadas a bloody mary e um clube de tiro ao pombo.

Riem da então recente Revolução Russa e de tudo que de lá vem (apesar de se encherem de vodca), mas o sarcasmo esconde o medo dos reflexos de ideais socialistas sobre seu próprio país –e a revolta trabalhista de que ouvem falar, ainda que a distância.

Lenise Pinheiro/Folhapress
Actress Jennifer Lawrence attends the
Rodrigo Scarpelli (esq.), Gabriel Miziara (centro) e Maria Manoella em cena de "Ala de Criados"

O mundo dos primos aristocratas acaba entrando em confronto com o de Pedro Testa (Eduardo Pelizzari), empregado no clube de veraneio que tenta se aproximar do universo dos Guerra, mas é usado por eles –agora insuflados pelos ecos da revolta portenha para uma espécie de "vingança" de classes.

"Kartun pega um microcosmo e dá conta dessas questões como um todo", diz o diretor, para quem o texto ressoa muito os dias de hoje.

"Acho que a questão institucional a que a gente chegou é muito séria. É o Estado de Direito, o contrato social que foram pro saco", diz. "E [a peça] fala de tudo isso só mostrando os fatos, sem cagar regra."

ARTICULADO

Rodrigues não fez alterações no texto. "É tão difícil mexer, porque tudo faz muito sentido, é muito articulado." As indicações do autor estão lá até no cenário, composto basicamente de uma pedra.

E também as transições de Kartun, que sobrepõe, em sua narrativa, uma sequência de cenas e de imagens –as gaiolas dos pombos do clube de tiro, por exemplo, depois se refletem num aprisionamento.

Mas é na boca de Tatana, única personagem feminina e a mais lúcida, que o autor destila seu sarcasmo e reflete sobre como o recrudescimento de valores extremistas pode minar a poesia e a ironia.

Ela mescla seu papel com o de narradora, fazendo comentários ao público. Como quando diz: "Metáfora é um divino eufemismo. Nada querem dizer, mas dizem tudo".

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ALA DE CRIADOS
QUANDO sex. e sáb., às 21h; dom. e feriados, às 18h; até 15/10
ONDE Sesc Bom Retiro, al. Nothmann, 185, tel. (11) 3332-3600
QUANTO R$ 9 a R$ 30
CLASSIFICAÇÃO 14 anos


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