Folha de S. Paulo


OPINIÃO

Caso da 'Queermuseu' corre o risco de se tornar triste rotina no país

Não é a primeira vez que uma instituição se curva a protestos. Alvo de ataques de movimentos de direita nas redes sociais, o Santander Cultural só engrossa uma lista de casos recentes.

Em vídeos e comentários nas redes sociais, obras de Adriana Varejão, Hudinilson Jr. e outros artistas de peso na arte do país vêm sendo classificadas como apologia da pedofilia e da zoofilia ou como pura pornografia.

É mais um respingo do pensamento ultraconservador na esfera artística.

Há dois meses, o performer Maikon K. foi impedido pela polícia de Brasília de realizar uma ação em que aparecia nu em uma bolha de plástico, ato que havia realizado sem problemas dois anos antes em São Paulo.

Seis anos atrás, o Oi Futuro, no Rio, fez um papelão semelhante ao do Santander ao cancelar uma mostra da artista americana Nan Goldin antes ainda de sua abertura.

Detratores então também falavam em pedofilia -no caso, os casais retratados pela artista ao lado de seus filhos crianças ou bebês nus.

Um dos nomes mais importantes da história da fotografia, Goldin teve sua mostra levada às pressas para o Museu de Arte Moderna da cidade, onde foi um grande sucesso de público.

No caso do Santander, a mostra foi bancada com recursos incentivados. É um exemplo de bom uso do dinheiro público, ao promover o debate sobre direitos civis de uma população cada vez mais em risco na violência do clima político atual.

Sua interdição esbarra no desperdício de verbas já escassas e valida o discurso raso e novas modalidades de fascismo a despontar.

Lembra a briga em torno de uma mostra de Robert Mapplethorpe em Washington na década de 1980, cancelada depois de protestos de políticos contrários ao uso de verbas públicas para financiar uma retrospectiva do fotógrafo famoso por retratos homoeróticos.

Em Nova York, no início deste ano, a pintura do corpo de um negro num caixão detonou uma batalha entre os que queriam destruir ou remover o quadro e os que defendiam a liberdade de expressão. Enquanto a obra seguiu exposta no Whitney, um trabalho do artista Sam Durant em Minneapolis, será destruído após protestos da comunidade indígena.

Obras de arte são um reflexo de seu tempo e suas contradições. Sustentar diante da vida um espelho que revela suas distorções e atritos não deixa de ser o que alguns dos artistas da mostra de Porto Alegre fazem com maior ou menor eloquência.

Nada, no entanto, justifica a censura. Boas ou ruins, as obras ali despertam um debate mais do que necessário. Ao ceder a protestos vazios, instituições como o Santander Cultural passam atestado de incompetência e insensibilidade.

Também revelam o ponto fraco de um sistema em que museus e centros culturais moldam sua programação pelo prisma do marketing e não do interesse público, uma das distorções do financiamento à cultura no Brasil.

Neste país em que bancos, shoppings e gigantes da telecomunicação apoiam a arte só até o ponto em que as obras não causem prejuízo à imagem institucional, o caso de Porto Alegre corre o risco de se tornar uma triste rotina.


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