Folha de S. Paulo


Poeta chileno Nicanor Parra completa 103 anos e ganha coletânea no Brasil

Carla Pinilla/El Mercurio
O poeta chileno Nicanor Parra
O poeta chileno Nicanor Parra

Para proteger seus nove filhos do frio que fazia em San Fabián de Alico, no sul do Chile, a mãe de Nicanor Parra forrou as paredes dos quartos da casa humilde da família com folhas de jornal. "Foi assim que ele começou a ler e a se apaixonar pela leitura", conta à Folha a escritora chilena Diamela Eltit, amiga e ex-aluna do poeta.

Parra, que completa 103 anos na próxima terça (5), continua produtivo.

Está com uma nova obra nas livrarias do Chile, "El Último Apaga la Luz" (Penguin Random House), coletânea que reúne escritos antigos e recentes e que também sai na Argentina, no México e no Peru. E, finalmente, terá uma edição comercial de seu trabalho no Brasil. A editora 34 prepara, para 2018, uma antologia de 60 poemas do autor, escritos entre 1954 e 1972.

"Nicanor não para de trabalhar em textos novos, em obras visuais e tampouco deixa de ler e de escutar música. É um mistério como consegue fazer tudo isso. Tem dezenas de cadernos com obras inéditas que não deseja publicar. Aos 103, não tem pressa nenhuma", conta Matías Rivas, seu editor há mais de 15 anos.

O sobrenome Parra é uma referência em todo o Chile, pois vários dos integrantes da família se dedicaram às artes, principalmente à música.

Os nomes com maior projeção internacional, entretanto, são os de Nicanor, ganhador do Prêmio Cervantes, em 2011, e o de sua irmã, Violeta Parra (1917-1967).

Estudiosa da música folclórica chilena, Violeta foi também compositora e cantora. É autora de alguns clássicos do cancioneiro latino-americano, como "Gracias a la Vida" e "Volver a los 17". Neste 2017, completam-se 50 anos de seu suicídio.

Já Nicanor Parra se transformaria no inventor dos "antipoemas", nos quais transgredia as regras da poesia formal. Entre seus admiradores estavam o compatriota Roberto Bolaño (1953-2003), o crítico americano Harold Bloom e o poeta beat Allen Ginsberg (1926-1997).

Filho de um professor de escola primária e de uma costureira, primogênito do casal, Nicanor abriu as portas do mundo para os oito irmãos.

Aos 17, mudou-se sozinho para Santiago, para estudar matemática e física. Depois, ganhou uma bolsa para cursar a Universidade Brown, nos EUA, e na sequência, outra para Oxford, na Inglaterra, onde estudou cosmologia.

Ao retornar à capital chilena, passou a dar aulas na Universidade do Chile, a acolher os parentes que buscavam ajuda e a escrever poemas.

"Poemas & Antipoemas", de 1954, foi a obra que lhe deu projeção internacional. A partir daí, começou a publicar de forma constante.

A escritora brasileira Nélida Piñon conheceu o chileno nos anos 1970.

"Naquela época não se falava tanto de Violeta Parra, o mais conhecido da família era o Nicanor. Eu gostei dos antipoemas, pois me pareciam uma resposta ao lirismo exaltado de Pablo Neruda", conta à Folha.

De fato, com relação a Neruda (1904-1973), que ganhou o Nobel em 1971, Parra mantinha certa rivalidade.

"O Neruda tinha muita mídia e muitos seguidores, talvez por isso sua projeção internacional tenha opacado a de Nicanor. Mas Parra é de uma originalidade, de um humor inteligente que são únicos", diz Piñon.

Quanto ao fato de nunca ter sido editado no Brasil, a autora crê que se deva ao isolamento do país com relação ao resto da América Latina.

"Somos desterrados, e isso nos leva a entronizar tudo o que é de fora e a desprezarmos o que é daqui, da nossa América", completa Piñon.

O editor Rivas é um pouco mais duro ao avaliar o desconhecimento de Parra no Brasil, lembrando que o autor foi traduzido para diversos outros idiomas.

"Nicanor Parra não precisa divulgar seu trabalho. Essa tarefa é de editores e agentes. Sua obra é contundente e inobjetável e ganhou elogios em várias partes do mundo. Basta dizer que seu primeiro tradutor ao inglês foi nada menos que (o poeta americano) William Carlos Williams, nos anos 1950."

E acrescenta sua própria definição de Parra: "Trata-se de um poeta intelectual, que pensou a poesia e que, no Chile, obrigou os poetas a não se fazerem de inocentes".

Um episódio relacionado à política, porém, fez com que Parra fosse, por um tempo, deixado à margem entre a intelectualidade chilena.

Em 1970, o poeta estava participando de um evento literário em Washington quando foi convidado a visitar a Casa Branca e a tomar chá com a mulher do presidente Richard Nixon, Pat.

Embora tenha feito a visita junto a outros escritores como um gesto de cortesia, a foto com a então primeira-dama dos EUA teve uma repercussão negativa entre seus pares, e o escritor foi expulso do jurado do prêmio cubano Casa de las Américas, um dos mais prestigiados da época.

"Ele então deixou de ser convidado para os eventos", conta Diamela Eltit.

"Mesmo tendo se oposto à ditadura de Pinochet, principalmente após 1975, ele nunca foi perdoado pela esquerda; cobravam-lhe o fato de não ter deixado o país e até por ter aceito um convite para dar aulas numa universidade, enquanto em outras havia demissões massivas de professores esquerdistas", completa a escritora.

ISOLAMENTO

Desde 1994, Nicanor Parra vive no vilarejo de Las Cruces, um balneário de 2.000 habitantes a 200 quilômetros de Santiago, em cuja porta vizinhos escreveram "Antipoesia", grafite que o poeta nunca apagou. Ali, seguiu escrevendo e dedicando-se a traduzir obras de Shakespeare.

Nos últimos tempos, foram poucos os jornalistas que conseguiram marcar um papo com o poeta no local.

"Quando ele abriu a porta, e vi que existia de verdade, fiquei incrédula", conta a argentina Leila Guerriero.

Durante a entrevista, em 2011, porém, a experiente repórter diz que não se sentiu à vontade. "Eu achava que estava sendo testada o tempo inteiro, pois ele perguntava se eu conhecia a lista de autores que ia mencionando."

Guerriero conta que teve a sensação de estar todo o tempo diante de um personagem. "Mas um personagem que também é ele. Só que deixa ver que, por trás, há alguém que é intransponível, impenetrável, um ser muito complexo."

Por outro lado, os que frequentam Las Cruces contam que Parra não passa muito tempo sozinho. Filhos e netos o visitam, e ele chama as pessoas do lugar para conversar.

"Um dia, o pedreiro que fez obras na minha casa me contou que Nicanor o tinha convidado para almoçar", conta Eltit, que tem uma casa próxima à do poeta no balneário.

"Esse pedreiro provavelmente não conhece uma sílaba de poesia. Mas assim é Nicanor, e assim era a Violeta, artistas que se alimentaram muito da sabedoria popular."


Endereço da página: