Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Obra sobre prisão impede que leitor tire as próprias conclusões

Daniel Marenco/Folhapress
A autora Ana Paula Maia já publicou seis livros
A autora Ana Paula Maia já publicou seis livros

ASSIM NA TERRA COMO EMBAIXO DA TERRA (regular)
AUTORA Ana Paula Maia
EDITORA Record
QUANTO R$ 32,90 (144 págs.)

*

Ana Paula Maia, nascida em 1977 em Nova Iguaçu, começou a carreira literária em 2003 e publicou seis livros.

Neles encontramos personagens masculinos brutalizados, pouca atenção aos detalhes e às exigências da prosa realista, narradores oniscientes e uso do tempo verbal do presente do indicativo. Além disso, há uma ênfase no enredo ágil. A constância indica um projeto consistente, e em certa medida, consciente.

Em seu último romance, "Assim na Terra Como Embaixo da Terra", Maia parte do conto "Na Colônia Penal", de Franz Kafka (1883-1924), para construir a própria versão de um campo prisional.

A colônia do romance é comandada pelo oficial psicopata Melquíades e um único agente, Taborda. Dali ninguém nunca escapou. Dos 42 presos originários, sobraram poucos. Os outros foram executados e enterrados ali mesmo. Trata-se de um campo de extermínio.

"A Justiça está sempre um passo atrás da injustiça", diz Melquíades. "Eu não estou aqui para julgá-los [...] Eu estou aqui para corrigi-los." A punição, descobrimos mais à frente, está inscrita no frontispício da colônia: "A correção nos torna livres".

Aqui o romance se constrói em torno do enredo de superação de um dos presos, Bronco Gil, diferentemente do conto de Kafka, em que o que está em primeiro plano é a falência de uma linguagem que sirva aos diferentes personagens, num espaço que é visto com tamanha proximidade que escapa à compreensão geral.

O distanciamento implícito na onisciência do narrador e a manutenção do tempo verbal no presente fazem com que aquilo que começara como um projeto ambicioso –trabalhar um mundo isolado onde seus personagens não tivessem passado ou futuro, numa linhagem que partiria de Kafka para passar por Samuel Beckett (1906-1989) e chegar a J.M. Coetzee –se transforme em apenas um thriller. 

Que, diga-se, já tem sua sequência escrita: o final do livro é um prenúncio do que acontecerá em seu romance anterior, "De Gados e Homens" (Record, 2013).

Maia arma um cenário para exibir nossa condição trágica, mas nos entrega uma diluição em chave menor.

Esse é um fenômeno contemporâneo.

Se, para Kafka, não havia esperanças para a humanidade, uma nova geração (não apenas de escritores) parece acreditar na possibilidade de subverter a experiência coletiva em enredos supostamente realistas de superação pessoal.

A estratégia, sabemos, torna a vida mais fácil. Por um lado fingimos não ignorar que o mundo é cruel e que os exemplos de iniquidade são abundantes ao nos expormos aos relatos daquilo que há de pior: guerras, genocídios, diásporas, fome etc.

Por outro, nos contamos histórias com tramas cadenciadas que reforçam a sensação de que, sim, nossa atuação pessoal, e somente ela, é que pode nos livrar do mal.

Assim na Terra Como Embaixo da Terra
Ana Paula Maia
l
Comprar

A pouca complexidade da escrita contribui para a satisfação dessa equação, com abundância de advérbios e caracterizações fáceis, como em "Taborda [...] sente-se terrivelmente miserável quando os presos olham para ele com clemência. [...] O sentimento de hierarquia o corrói como um verme".

Onde se pediria uma cena, o narrador entrega uma interpretação. Retira do leitor a chance de chegar às próprias conclusões e oferece, em troca, a ilusão de compreender esse mundo brutal.

Ao final restam apenas resíduos de um enredo que parece ter sido desenhado para o cinema: um bandido que se torna herói, o facínora que paga por seus erros, o esperto que se safa pisando na cabeça de outro mais burro, o humilhado que morre ainda mais humilhado. Isto é, em vez de alteridade, alienação.


Endereço da página:

Links no texto: