Folha de S. Paulo


Maior mostra de Di Cavalcanti desde sua morte revela seu erotismo plural

Os bicos dos peitos saltam para fora do decote. No mesmo tom escarlate do vestido e dos adornos do bordel, o batom que tinge os lábios dessa "Mulata com Leque" faz dela mais carne do que espírito.

Di Cavalcanti, alvo agora de uma retrospectiva monumental na Pinacoteca, buscou nessas mulheres fogosas, quase sempre mestiças, um retrato de seu país -o Brasil visto da alcova, na penumbra dos salões ensebados dos cabarés.

"Ele entra nos becos, nos lugares sujos das cidades", lembra José Augusto Ribeiro, à frente da mostra que celebra 120 anos de nascimento do artista. "Tem um erotismo muito saltado nos trabalhos, mas também uma idealização grande, a ideia da mulher como um símbolo do país."

Divulgação
Mulata com Leque', tela realizada em 1937 por Di Cavalcanti, agora na Pinacoteca
'Mulata com Leque', tela realizada em 1937 por Di Cavalcanti, agora na Pinacoteca

No caso, uma ideia que envelheceu mal. Enquanto a crítica relegou Di Cavalcanti ao plano inglório de alegorista nacional, à sombra das representações mais agudas de Portinari, suas mulheres lânguidas, moldadas por certa letargia tropical, ganharam um verniz sexista, às vezes racista, na atualidade.

"Sua obra fala de um Brasil que se quer cordial e ainda é muito violento", diz Ribeiro. "No começo do século 20, a mestiçagem era um traço distintivo do país. A ideia do mulato era muito valorizada. Era um termo que tem essa ideia de democracia embutida, mas é ao mesmo tempo superpreconceituoso. Essa tensão faz a obra do Di."

Outra tensão que ancora o trabalho camaleônico do artista parece ser o atrito entre seu apego à figuração, num realismo edulcorado da vida de pescadores, prostitutas e moças do interior, e sua adesão reticente às vanguardas.

Di Cavalcanti viu todas as ondas estéticas do século passado florescerem e murcharem diante de seus olhos. E as mais de 200 obras da mostra, a maior dele desde a década de 1970, revelam seus momentos de atração e repulsa em relação a essas correntes, mostrando um artista bem maior do que um refém de olhares lascivos nos bordéis.

Ele flerta, aliás, com tudo. Evoca o impressionismo, o cubismo, o muralismo mexicano, a pintura metafísica italiana em intervalos curtíssimos de tempo, como quem usa a última moda e logo se cansa. Essa fricção entre suas estratégias muitas vezes contraditórias acaba se tornando a grande surpresa da mostra.

Enquanto o traço firme de seu passado de ilustrador se mantém como alicerce das pinturas, em que figuras surgem delineadas por linhas espessíssimas, algumas composições se repetem ao longo da vida com esquemas cromáticos distintos, do mais sombrio ao mais solar, como se o artista revisse suas atitudes diante de um país em mutação.

Numa ponta do espectro, por exemplo, está "Devaneio", um retrato de moças com vestidos coloridíssimos e lustrosos, quase metálicos, como pintava Fernand Léger. Na outra, mais três mulheres adormecem ao relento, debaixo de um céu acachapante.

Seu turbilhão de cores, no entanto, nunca deixa de lado uma atenção doentia aos detalhes, como fios de cabelo que são ranhuras na tela -a volúpia da forma como o dado mais firme de seu erotismo.

DI CAVALCANTI
QUANDO abre neste sábado (2), às 11h; de qua. a seg., das 10h às 17h30; até 22/1/2018
ONDE Pinacoteca, pça. da Luz, 2, tel. (11) 3324-1000
QUANTO R$ 6, grátis aos sábados


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