Folha de S. Paulo


Trans em 'A Força do Querer' faz parte de estratégia por mobilização social

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Os sambistas Nelson Sargento (com o microfone) e Monarco (de chapéu) se apresentam no projeto Nelson Com Vida, na Casa Natura Musical, em SP ***DIREITOS RESERVADOS. NÃO PUBLICAR SEM AUTORIZAÇÃO DO DETENTOR DOS DIREITOS AUTORAIS E DE IMAGEM***
A partir desta semana, intensifica-se sua transição para Ivan (à dir.)

Nas últimas semanas em "A Força do Querer", atual novela das 21h da Globo, Ivana se descobriu transexual e começou por conta própria uma terapia hormonal.

Em breve, a personagem mudará seu nome para Ivan, e as primeiras características da readequação de gênero ficarão visíveis; também sofrerá com discriminação e com a rejeição de sua família.

A personagem de Carol Duarte faz parte de uma estratégia da Globo em busca de mobilização social para discutir, nas telas, sexualidade e identidade de gênero.

Em entrevista à Folha, Beatriz Azeredo, diretora de responsabilidade social da emissora, explica que seu departamento identifica temas a partir de encontros com o público, monitoramento de redes sociais e conversas constantes com especialistas.

"Buscamos escutar a sociedade e entender as angústias de uma juventude que está cada vez mais empoderada", diz Azeredo.

Há um interesse especial no público com menos de 30 anos. "Se há assuntos com os quais as famílias e as escolas estão lidando, nada mais natural do que eles reverberarem na televisão."

Sérgio Valente, diretor de comunicação da Globo, explica que toda a cadeia produtiva é influenciada por assuntos do âmbito da responsabilidade social.

"Mas não definimos nada, quem gera o conteúdo criativo tem liberdade total", diz.

Assim, um mesmo tema é abordado por vários programas. "Com ações em conjunto você dá à população um arcabouço de informações."

No caso da novela de Gloria Perez, foram mais de quatro meses desde a estreia, até a personagem chegar a este momento. Suas dúvidas e descobertas foram mostradas de maneira didática.

A Globo tem notado a popularidade de Ivana nos índices do Ibope. "A Força do Querer" teve picos de 42 pontos em São Paulo em momentos decisivos da personagem.

A audiência média da novela na Grande São Paulo é de 34 pontos (cada ponto equivale a 199.309 indivíduos).

SEM PLANO B

O posicionamento progressista da Globo em relação a temas LGBTs é novo.

Em 2005, um beijo gay na novela "América", também de Gloria Perez, foi cortado poucas horas antes de ir ao ar.

Um beijo entre dois homens só foi visto oito anos depois, em "Amor à Vida" (2013). Em 2016, "Babilônia" encontrou rejeição de parte do público ao mostrar, no primeiro capítulo, um beijo entre Fernanda Montenegro e Nathalia Timberg.

A possibilidade da desaprovação foi levada em consideração no caso de Ivana.

"Essa sociedade que não quer conversar sobre isso também está contemplada na obra", diz Valente, que acredita que o telespectador brasileiro está pronto para discutir qualquer assunto, "dependendo do talento com o qual essa temática é colocada".

Gloria Perez não tinha um plano B caso Ivana fosse rejeitada pelo público.

"Sendo um tema ainda tão desconhecido para a maioria das pessoas, a preocupação foi construir empatia. O público compartilhou sua angústia e a descoberta de sua identidade. Está indo junto com ela", diz à Folha.

A autora é experiente no chamado "merchandising social", nome dado à inserção de temas sociais em tramas de novelas (veja quadro abaixo). "A novela pode suscitar um debate nacional sobre um determinado assunto."

Para escrever a trama de Ivana, a autora mantém por perto alguns transexuais, como João Nery, considerado o primeiro homem trans operado no Brasil -seu livro, "Viagem Solitária", apareceu em algumas cenas da novela.

Um desafio futuro deve vir da demanda por ampliar a abrangência do tema.

A psicóloga Maria Lucia Pereira, especialista em sexualidade, aponta que seus pacientes trans esperam ver como será a abordagem de questões legais, como a retificação dos documentos com o nome social.

Viagem Solitária
João W. Nery
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A também psicóloga Edith Modesto, fundadora do Grupo de Pais de LBGTI, enxerga um saldo positivo: "Aparecer como personagens de novela traz às pessoas trans a esperança de dias melhores".

Carol Duarte vê na sua personagem a possibilidade de iluminar o assunto. "A novela pode trazer essa discussão para a sociedade como se fosse uma faísca", diz.

"Ouvi histórias muito violentas, e de pessoas que não conseguem arrumar emprego ou terminar o colégio por causa do preconceito. O corpo dessas pessoas é quase um manifesto", afirma a atriz.

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MERCHAN SOCIAL
Temas de debate em tramas de Gloria Perez

'Carmen' (Manchete, 1987)
Teve campanha de conscientização da Aids, com participação do sociólogo Herbert José de Sousa, o Betinho.

'Barriga de Aluguel' (Globo, 1990)
Tratou de inseminação artificial e barriga de aluguel, com Clara (Claudia Abreu) sendo contratada para gerar o filho de Ana (Cássia Kis Magro) e Zeca (Vitor Fasano).

'De Corpo e Alma' (Globo, 1992)
Abordou a doação de órgãos; o Incor registrou aumento no número de transplantes naquele ano.

'Explode Coração' (Globo, 1995)
Na trama, o menino Gugu (Luiz Claudio Junior), filho de Odaísa (Isadora Ribeiro), desaparecia. A atração mostrou as Mães da Cinelândia, com depoimentos sobre seus filhos desaparecidos; 60 crianças foram localizadas durante a exibição da novela.

'O Clone' (Globo, 2001)
O formato de depoimentos reais também foi usado, desta vez abordando o alcoolismo, com o personagem Lobato (Osmar Prado), e a dependência química, com Mel (Débora Falabella).

'América' (Globo, 2005)
Teve personagens deficientes visuais e a protagonista, Sol (Deborah Secco), era imigrante ilegal nos EUA.

'Caminho das Índias' (Globo, 2009)
Discutiu saúde mental a partir da trama de Tarso (Bruno Gagliasso), que sofria de esquizofrenia.

'Salve Jorge' (Globo, 2012)
Exploração sexual e tráfico de pessoas foram temas centrais na novela.


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