Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Cartas de Antonin Artaud são camadas de um autorretrato

Reprodução
O escritor, poeta e ator francês Antonin Artaud
O escritor, poeta e ator francês Antonin Artaud

A PERDA DE SI: CARTAS DE ANTONIN ARTAUD (muito bom)
AUTOR Antonin Artaud; Ana Kiffer (org.)
TRADUÇÃO Ana Kiffer e Mariana Patrício Fernandes
EDITORA Rocco
QUANTO R$ 34,50 (176 págs.)

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O autorretrato do escritor não é a autobiografia, mas suas cartas. É nelas que quem escreve muito se mostra sem querer se mostrar, muito é observado sem querer ser visto fora da intimidade entre a mão que traça o papel e o olhar de quem o toca.

Ler as cartas de Antonin Artaud (1896-1948) reunidas em "A Perda de Si", lançado pela coleção Marginália, da Rocco, é como dar forma a um quebra-cabeça inserindo peças dadas como perdidas. Ou como juntar pedaços de um autorretrato rasgado.

Pouco publicado no Brasil, porém bastante estudado –em especial no meio psicanalítico–, Artaud teve uma vasta produção textual concentrada principalmente em seus últimos anos de vida, enquanto esteve internado em vários hospitais psiquiátricos.

A dor de existir aliada ao paradoxo de sua doença, sobre a qual ele oscila se dizer entendedor, perpassa sua obra como a de qualquer artista que já viveu em manicômios –a questão é que suas cartas vão além do clichê.

RECORTE

O recorte feito pela organizadora Ana Kiffer, que também assina a elegante tradução com Mariana Patrício Fernandes, começa com a carta que Jacques Rivière, então editor da revista "Nouvelle Revue Française", envia a Artaud em 1923 recusando publicar seus poemas, mas o convidando para uma conversa.

"Sofro de uma assustadora doença do espírito", diz adiante o jovem Artaud, na época com 26 anos, como se buscasse na figura de Rivière um conselheiro que lhe guiasse na jornada da escrita.

As cartas de Artaud são especiais na literatura pela vastidão de possibilidades, pela variação de estilos quando reunidas –hora pessoais ou formais, narrativas ou poéticas.

Nas cartas que se seguem, vemos o Artaud do teatro falar dos propósitos de sua obra com Jean Paulhan, sucessor de Rivière na edição da "NRF"; o Artaud confessional falar da solidão a Anaïs Nin, sentindo "desde ontem o gosto de uma boca de mulher que me persegue, mas como uma ideia, como uma essência".

O Artaud que discute as bases da cultura francesa em cinco cartas a André Breton, talvez uma das mais bonitas vozes do volume. O Artaud que questiona com os médicos os dispositivos psiquiátricos que classificam seu espírito de artista levando em conta a aparência.

Antonin Artaud se perde em suas próprias correspondências para se reinventar como artista. Ou, como diz alhures, é por tanto ser ele mesmo que consegue ultrapassar a morte, e justo por morrer e renascer tantas vezes é que se torna ele mesmo.

"Seria preciso agora escrever as intermitências do ser."


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