Folha de S. Paulo


CRÍTICA

Livro de Tinhorão dá aulas sobre 200 anos de canção brasileira

Arquivo/Agência O Globo
Ismael Silva (1905-1978) retratado em 1957; sambista é tema de perfil biográfico que encerra o livro do pesquisador
Ismael Silva retratado em 1957; sambista é tema de perfil biográfico que encerra o livro do pesquisador

MÚSICA E CULTURA POPULAR (muito bom)
QUANTO: R$ 45 (192 págs.)
AUTOR: José Ramos Tinhorão
EDITORA: 34

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José Ramos Tinhorão começa mencionando Domingos Caldas Barbosa, tocador de viola, compositor e cantor de modinhas e lundus no século 18, passa para um samba carnavalesco de 1942 ("A Mulher do Leiteiro", de Haroldo Barbosa e Milton de Oliveira, aquela que "ainda lava garrafa vazia") e termina "problematizando" a feijoada da mulher do Chico.

"Mulher e Trabalho" –um dos melhores textos do recém-lançado livro "Música e Cultura Popular"– é um detalhado exame do nosso cancioneiro abrangendo os últimos 200 anos, para revelar como a mulher brasileira é quase sempre retratada do ponto de vista masculino.

Mesmo quando o compositor se chama Chico Buarque, considerado um intérprete sensível da alma feminina.

Para Tinhorão, a letra do samba "Feijoada Completa" –que relata o preparo do prato– resume a condição de força que o homem assume familiarmente, reservando para a mulher "a condição de uma empregada que ainda deve sentir-se satisfeita com a dominação": "Mulher/ Você vai gostar".

Esse tipo de análise é Tinhorão puro, você concorde ou não. Odiado e amado na mesma proporção, com quase 90 anos, mais de cinco décadas de militância crítica e cerca de 30 livros publicados, ele mantém a coerência ideológica de historiador musical marxista e nacionalista.

A conduta radical está definida à perfeição no título de um dos artigos da nova obra: "Country Brasileiro é Jeca Tatu Vestido de Cowboy".

Nele, Tinhorão mostra como a música sertaneja, a partir dos anos 1980, teve de vestir uma roupa diferente para agradar a elite dos milionários comerciantes de soja. Se ainda atuasse na imprensa, o que ele diria do "forró universitário" e da "sofrência"?

O livro reúne 16 textos escritos entre a década de 1970 e os anos 2000, divididos em duas partes.

A primeira é mais teórica, tratando da influência da indústria cultural na formação do gosto do público: "Quando uma criação do espírito se transforma em produto para o comércio, seu valor deixa de ser medido pelas leis da estética para reger-se pelas leis de mercado".

A segunda parte, mais agradável de ler, discorre a respeito dos diversos gêneros da música brasileira e seus principais compositores e intérpretes. "Um Som Instrumental que vive de Improviso", sobre o choro, é uma aula inesquecível, em tom de conversa no quintal. Nos cinco minutos da leitura, aprende-se o essencial.

A propósito, se você estiver diante de Tinhorão, jamais diga "chorinho" para definir esse gênero genuinamente carioca, consagrado desde a década de 1880 e que ainda continua vivo. Prefira, sempre, "choro". Aconteceu comigo de trocar as bolas e ganhei uma espinafração em regra.

"Chorinho é uma invenção da Ademilde Fonseca!", reclamou ele, referindo-se à intérprete que popularizou versões cantadas, em incrível velocidade, de "Brasileirinho" e "Apanhei-te, Cavaquinho".

Ao historiar os primeiros gêneros da música popular no Brasil a partir das gravações pioneiras da Casa Edison no início do século 20, o autor nos dá mais uma cátedra, apresentando os inaugurais maxixes, emboladas, toadas, marchas carnavalescas, sambas-canção.

É Tinhorão no que ele tem de imbatível: o faro de pesquisador, capaz de provar – para irritação dos portugueses– que o atual canto do fado nasceu de uma dança levada, há mais de um século e meio, do Brasil para Portugal. Capaz, também, de desconstruir o rasga, dança negro-portuguesa que veio para cá.

Em todos os textos brilha o estilo do autor –limpo e informativo, com algo de clássico na estrutura às vezes longa das frases–, herança dos tempos do José Ramos (Tinhorão é apelido derivado da planta tóxica e incorporado ao sobrenome) que integrou a famosa equipe de copidesque do "Jornal do Brasil" nos anos 1960.

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Fecha o volume um perfil biográfico de Ismael Silva (1905-1978), o bambambã do Estácio que liderou o processo de formatação do samba urbano carioca no final da década de 1920. O resultado é uma visão íntima, emotiva até, do compositor de "Se Você Jurar", transformado em parceiro do cantor Francisco Alves no auge da era do rádio.

A verdadeira história do samba "Antonico" –o Nestor, "que está vivendo em grande dificuldade", é o próprio Ismael– desnuda o drama do artista esquecido pelo tempo depois de amargar um período na cadeia.

Mas até o marxista Tinhorão comete os seus pecados. A primeira gravação de "Antonico", em 1950, é de Alcides Gerardi (disco Odeon, 12.993 B, matriz 8,625). E não de Gilberto Alves, como erradamente afirma o excepcional pesquisador.


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